Uma marca de batom ...

 

Uma marca de batom ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quem diria que um artigo da beleza feminina se tornaria a semente da discórdia em questão jurídica! Pois é, aconteceu! Um batom, caro (a) leitor (a)! Picharam a escultura "A Justiça", criada pelo artista mineiro Alfredo Ceschiatti, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, quando da tentativa de Golpe de Estado, em 08 de janeiro de 2023.

Mas, por incrível que pareça, a história não difere muito do célebre caso do “batom na cueca”. A prova irrefutável da traição. Acontece que o flagrante, inegável e incontestável, da referida marca não resume em si mesma a tal ruptura da confiança. Até chegar ali, muita água rolou por debaixo dessa história.

O “batom na cueca” é só o símbolo de um processo que vinha se desenrolando há algum tempo. A traição não foi um fato inesperado, acidental, casual. Quem se dispõe a trair é porque nutre um impulso em fazê-lo. Inclusive, há quem diga que “trair e coçar é só começar”.

Ora, o proibido sempre traz uma sensação de prazer, o qual mexe com as emoções e os sentimentos mais profundos do indivíduo. Seja ele, homem ou mulher. Não é à toa que Eleanor Roosevelt disse, “Se alguém trai você uma vez, a culpa é dele. Se trai duas vezes, a culpa é sua”.

De modo que a traição é uma história e não, uma fotografia. Ela sempre tem início, meio e fim. Dispõe de vários cenários, circunstâncias, personagens, recortes temporais, enfim. O que significa que o tal “batom na cueca” é só um clímax da história. Um descuido, um deslize, de uma série de eventos que vieram se desenvolvendo dentro de um espaço de tempo, breve ou longo.

Por isso, a raiva despertada não é exatamente pelo batom na cueca; mas, pela consciência de todo o processo que culminou naquela marca. O ser traído é levado a mergulhar em um mar profundo de conjecturas e suposições dolorosas e cruéis, quando se depara com o “batom na cueca”. Como se aquele símbolo nefasto esfacelasse um conjunto de promessas voltadas ao respeito, ao cuidado, à cumplicidade, ao afeto, à dedicação, ...

Logo, não se pune pela marca em si; mas, pelas inúmeras camadas imersas na subjetividade do ato traidor. Tudo o que aconteceu e não se viu; pois, estava imerso nas mentiras, nas dissimulações. Uma história oculta, cujos capítulos demostram a total negligência em relação ao outro, aos sentimentos do outro. Afinal, a traição se mostra pela exacerbação do individualismo egoísta e narcísico.

Por essas e por outras, é possível tecer uma analogia entre o caso da pichação da escultura e o caso do “batom na cueca”. Em relação à escultura é preciso destacar que tal atitude representou em si, um crime de dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

Entretanto, a justiça se fundamenta na construção da história e, por isso, pode apurar o envolvimento da responsável pelo dano em circunstâncias prévias, capazes de serem enquadradas nos crimes de liderança de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.

Portanto, já havia por parte dessa pessoa a intenção e a predisposição de agir na contramão da lei. Ainda que, em sua defesa seja alegado o desconhecimento jurídico, desde que se iniciaram os acampamentos em portas de quartéis-generais, manifestações clamando por ruptura institucional e outros despautérios antidemocráticos, diversos veículos de comunicação e de informação já alertavam a respeito da inconstitucionalidade e da configuração criminosa desses comportamentos. Razão pela qual, o batom na estátua não pode sustentar uma tese de natureza tão vitimista.

Já dizia Pablo Neruda, “Você é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das consequências”. Por isso, cuidado com o batom! Se olharem só para o que ele é capaz de normalmente produzir, podem tender ao exercício da benevolência, por se tratar de um ato de menor relevância. Mas, se dissecarem as camadas por trás dele, podem entender a gravidade, ali escondida, e não permitir que tais atos deixem de receber a devida repreenda. Assim, lembre-se de que, em um piscar de olhos, o sensual pode se tornar um escândalo.