Entre a criatura e o criador, de que lado você está?
Entre
a criatura e o criador, de que lado você está?
Por
Alessandra Leles Rocha
Por mais que as pessoas resistam
em admitir os movimentos de tensão e desestabilização democrática, eles estão
aí. E no seu arrasto, os direitos humanos fundamentais estão se deteriorando a
olhos vistos, a partir de rupturas e reorganizações nas políticas públicas e
legislações. De modo que a sobrevivência encontra, cada dia mais, desafios e
obstáculos para se manter.
Demorou; mas, chegou, o momento
em que as Revoluções Industriais começariam a fazer valer o contrato tácito que
elas firmaram com a humanidade. De certa forma, em bem menos tempo do que se
poderia imaginar para um processo tão complexo.
Mas, ele chegou para nos lembrar
de que foi a partir dessas revoluções sociais que a vida humana foi lançada a
um nível de desimportância inimaginável. Os indivíduos tornaram-se, nada mais
nada menos, do que peças de reposição das engrenagens produtivas e de consumo. Afinal,
o TER suplantou o SER.
E nesse movimento contínuo,
orquestrado pela célere dinâmica da Ciência e da Tecnologia, a vida humana foi
perdendo seu espaço de destaque e de prioridade, em razão de uma produção que
deveria ser maior por um custo menor. Seres humanos custam caro. Custam
salários, benefícios, férias, e nem sempre retornam tais investimentos por meio
da capacidade de trabalho e de consumo.
Motivo pelo qual estão sendo
substituídos por um intenso projeto de mecanização e robotização, que abre
espaço para o surgimento de uma legião de desempregados e de uma condição de
precarização do trabalho mais e mais acirrada.
Afinal, a recolocação no mercado
de trabalho, nos moldes formais que se conhece, encontra-se em franco processo
de extinção; pois, a demanda de mão de obra humana é cada vez menor. Isso
significa que, por tabela, os outros direitos fundamentais – educação, saúde,
previdência social, lazer, segurança, proteção à maternidade e a infância e
assistência aos desamparados – vêm sendo, também, severamente impactados.
A ideia de construir um caminho
de equidade e de igualdade social, de repente, parece ter perdido o sentido,
tendo em vista a pouca relevância que os indivíduos passaram a desfrutar em um
mundo de plena expansão tecnológica.
Sendo assim, não é de se espantar
que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) volte “a julgar extensão de cobertura de tratamentos por planos de saúde”.
Isso significa determinar “se as
operadoras de planos de saúde podem ser obrigadas a cobrir procedimentos que
não estejam elencados na lista – ou seja, se o rol da Agência Nacional de Saúde
(ANS) é exemplificativo (e portanto pode ser extrapolado), ou taxativo (e deve
ser seguido à risca, sem obrigação de cobrir mais nada)” 1.
Bem, considerando que a
contemporaneidade tem exposto a vida humana a uma infinidade cada vez maior de
doenças, síndromes e transtornos, tem havido um processo de adoecimento
populacional bastante significativo e que se agrava diante das conjunturas das
desigualdades sociais.
Assim, o adoecimento e a
vulnerabilização social tornaram-se diretamente proporcionais, mostrando
claramente como a deterioração dos mesmos fomenta o aparecimento do morticínio
social. Sim, porque não apenas pelas
perdas humanas que se dá o massacre; mas, pela construção de obstáculos
intransponíveis de acessibilidade aos atendimentos médico-hospitalares
demandados dentro da realidade atual.
A generalização superficializada
desse processo de adoecimento social desfigura o que de fato está acontecendo,
estabelecendo um rol de doenças tratáveis enquanto permite que outras sequer
sejam questionadas e/ou investigadas. Daí a cronificação das carências dos
serviços de saúde, que passam não só a não contar com profissionais,
infraestrutura e insumos suficientes para atender os pacientes, como, também, a
não dispor de tratamentos de alta complexidade e vanguarda.
Ora, é justamente isso que tem
produzido o fenômeno da judicialização da saúde, no Brasil. Afinal de contas,
diz a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 196, que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação”.
De modo que fica bastante
evidenciado o enviesamento interpretativo dos entes públicos em relação ao que
expressa muito claramente a lei maior do país. O que significa uma constante
arbitragem, por parte do Judiciário, para o cumprimento desse direito “universal e igualitário”, ou seja, um
direito no qual não cabe quaisquer menções de discriminação social ou de
demanda de serviço médico-hospitalar.
A lei não faz ressalvas, não
estabelece exceções, porque a saúde humana é um todo indivisível e ninguém
escolhe deliberadamente se vai ficar doente, que doença vai ter, que
tratamentos precisa realizar, que remédios irá tomar, simplesmente adoece.
E há uma questão, ainda mais,
crucial nessa discussão. A de que o adoecimento populacional tem tido cada vez
mais o componente das desigualdades sociais, decorrentes da insuficiência, da
ineficiência, do descaso e da irresponsabilidade do poder público. Sobretudo,
em relação aos segmentos mais vulneráveis da população.
Portanto, a judicialização
tornou-se um modus operandi do Estado
para ganhar tempo em não fazer, em não cumprir as leis, não se importando, em
absoluto, com a vida de quem aguarda por uma decisão.
Esse mecanismo que vem se institucionalizando
está, na verdade, estreitando os limites entre a vida e a morte a algo
insustentável. Tudo porque o ser humano não é mais importante, mais
fundamental, para o sistema. Ele é, agora, visto e entendido como um ônus
desnecessário e passível de substituição pelas novas tecnologias. A criatura está
destruindo o criador.
Como escreveu Mary Shelley, “Mente calma, a salvo de paixões perturbadoras,
é a condição do ser humano em seu estado normal. Não pode a busca do saber ser
elevada à conta de exceção a essa regra. Se o estudo, por qualquer forma, tende
a debilitar nossas afeições, nosso gosto pelos prazeres simples, trata-se então
de uma atividade ilícita, que não se ajusta ao espírito humano. Se essa norma
fosse sempre observada, se todo homem estabelecesse um limite entre seus
misteres e sua vida afetiva, a Grécia não teria sido escravizada, César teria
poupado a sua pátria, a América teria sido colonizada sem maiores conflitos, e
os impérios dos astecas e dos incas não teriam sido aniquilados” (Frankenstein
ou o Prometeu Moderno) 2. Portanto,
essa é a grande reflexão que nos cabe diante das conjunturas.
2
SHELLEY, M. Frankenstein ou o Prometeu
Moderno. Traduzido por Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2011. 244p.