A conta-gotas...


 

A conta-gotas...

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

O mundo acaba de saber a notícia do falecimento de Diego Armando Maradona, o craque do futebol argentino, aos 60 anos. Infelizmente, o limite entre a genialidade talentosa do atleta e o assédio do mundo das drogas é muito tênue, para garantir uma sobrevivência plena décadas a fio. O corpo humano não é feito para suportar os excessos repetitivos, ao desgaste impositivo que opera silencioso nas esferas do físico, do psíquico e do emocional.

Portanto, a grande reflexão no momento concentra-se no fato de que, infelizmente, ele não foi o primeiro e nem o último a provar desse gosto amargo da notoriedade, resultado dos brilhos dos holofotes, das ovações, dos delírios e da histeria do público, porque há uma conivência social velada pairando densa sobre nós.    

Sim, por pior que seja essa verdade, a sociedade tem uma parcela de culpa na degradação humana pelas drogas; sobretudo, no tocante aos artistas, aos atletas e as celebridades. Dada a sua visibilidade e influência social, essas pessoas sem se darem conta do alcance de suas ideias, comportamentos e atitudes conduzem milhares de outras para o Bem ou para o Mal, estabelecendo, de certo modo, uma simbiose com seus seguidores.

A questão é que essa roda do estrelato gira em alta frequência e resulta na construção de um mundo paralelo idealisticamente perfeito, o qual contrapõe em absoluto a realidade vigente. E quem está nessa roda dificilmente consegue sair sozinho da dinâmica impositiva que o amarra, ficando cada vez mais e mais a mercê das circunstâncias e conjunturas.  De modo que para eles a consumição se dá em todos os níveis humanos e materiais, até que não reste nada mais para destruir. Algumas vezes, nem a própria vida.

Esse é o grande perigo das relações míticas. A idealização do outro desconstrói a humanidade que reside no ser, objetificando-o. Enquanto se inebriam no consumo de uma personagem, as pessoas deixam de enxergar a pessoa que existe ali com todas as suas particularidades, frustrações, desencantos, carências e fragilidades. De repente, o feio fica belo, o terrível fica caricato, a destruição fica interessante, enfim...

Lentamente, essa percepção distorcida vai se incorporando ao inconsciente coletivo e se traduzindo em uma trivialização do adoecimento social. O raio de impacto das drogas começa a extrapolar essas fronteiras e invadir os espaços cotidianos das cidades, desestabilizando os parâmetros e ordenamentos estabelecidos sem que uma resposta efetiva da gestão pública aconteça.

Isso significa que o processo se nutre de uma retroalimentação equivocada da sociedade. Como pode não se enxergar o problema, quando o usuário está no rol da fama e da notoriedade, e blasfemar com todas as piores ofensas e insultos, quando esse usuário é um morador de rua? Queiram ou não admitir, por trás das drogas só existem seres humanos em franco processo de deterioração existencial.

A análise da dependência química não pode ser atrelada a raça, credo, escolaridade, gênero, ou nenhum outro parâmetro; porque se trata de vidas humanas. O abandono desses indivíduos a própria sorte é subliminarmente a decretação de uma pena capital. Eles não morrem porque decidiram morrer. Eles morrem porque estão doentes. Porque não há tratamentos adequados e acessíveis a todos. Porque seus corpos já foram vitimados por outras patologias oportunistas decorrentes de sua má condição de vida. Porque a vulnerabilidade psíquica e emocional afeta o seu comprometimento e engajamento rumo à mudança. ...

Mas, do mesmo modo em que a sociedade prefere não enxergar a presença dos dependentes químicos, ela também invisibiliza a ausência de políticas de acolhimento e tratamento adequado nas esferas da saúde pública, na medida em que não cobra e nem questiona as autoridades competentes a respeito. Ela faz de uma discussão social importante um tabu permeado de silêncios velados.

Por isso, se convive “numa boa” com drogas lícitas e ilícitas no país; como, se a terminologia dispensada pudesse atenuar o seu perigo. Quantas mortes promovidas por gente alcoolizada no volante, hein? Quantos fumantes ocupam leitos de UTI por enfisema pulmonar ou por câncer de pulmão? Quantos dependentes de remédios para reduzir a ansiedade ou induzir ao sono, ou para controlar a tosse, ou descongestionantes nasais, já perderam a vida por overdose? Pois é, ... quantos???

No fim das contas, fica difícil precisar quem está mais ou menos doente na sociedade, considerando-se todos os pesos dos atos e das omissões cometidas. Entre os que querem a vida em um só gole e os que entendem que ela precisa ser vivida a conta-gotas, há uma torrente de insalubridade reinando sob uma espiral infinita! Cada viés da saúde pública que se tenta dissecar expõe, portanto, um incontável número de mazelas graves cronificadas, as quais podem colaborar para o agravamento de outras em curso. Assim, mais dia menos dia as doenças sempre chegam até nós, de um jeito ou de outro. Ninguém está imune de tudo. Ninguém está isento de nada. Isso é a vida, naquilo que ela nos faz tão iguais.   

 

      

Comentários

  1. Beleza de texto, abordando o modelo degradante de nossa sociedade, que insiste em "fabricar doentes". Destaque especial para o final do texto: "... Ninguém está isento de nada. Isso é a vida, naquilo que ela nos faz tão iguais". Parabéns, mais uma vez!!!

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