Considerações sobre “Minha História”, de Michelle Obama

Considerações sobre “Minha História”, de Michelle Obama


Por Alessandra Leles Rocha



Sempre gostei de biografias por acreditar que as vidas humanas têm sempre algo a dizer. Nesse sentido, cada palavra ganha dimensões que podem, muitas vezes, extrapolar as expectativas do leitor e transcender aos seus limites particulares de percepção.
Tudo bem, que nem sempre esse gênero textual alcança toda essa plenitude. Seja por excesso de impessoalidade ou de pessoalidade. Seja por restrições naturais da pesquisa ou advindas de proibições judiciais. Seja por vieses de escolha. ... Mas, até mesmo quando essas situações acontecem, há sempre uma possibilidade de se extrair alguma coisa relevante da leitura.
Como escreveu Mario Vargas Llosa, em 2009, “a literatura, ao contrário, da ciência e da técnica, é, foi e continuará sendo, enquanto existir, um desses denominadores comuns da experiência humana, graças a qual os seres vivos se reconhecem e dialogam, independentemente de quão distintas sejam suas ocupações e seus desígnios vitais, as geografias, as circunstâncias em que se encontram e as conjunturas históricas que lhes determinam o horizonte. [...] E nada defende melhor os seres vivos contra a estupidez dos preconceitos, do racismo, da xenofobia, das obtusidades localistas do sectarismo religioso ou político, ou dos nacionalismos discriminatórios, do que a comprovação constante que sempre aparece na grande literatura: a igualdade essencial de homens e mulheres em todas as latitudes, e a injustiça representada pelo estabelecimento entre eles de formas de discriminação, sujeição ou exploração” 1.     
E, agora, posso dizer que suas palavras têm mesmo razão, pela experiência consagrada durante a leitura de “Minha História”, a autobiografia da ex-primeira dama dos EUA, Michelle Obama 2. Aguardava a leitura desde 2018, quando foi lançada; mas, só em 2020 consigo realizar o intento. Mas, tendo em vista que as biografias (e autobiografias) se revestem de uma atemporalidade preciosa, não houve prejuízos nisso.
Na verdade, senti-me presenteada pela qualidade e objetividade textual presente em cada linha daquelas 438 páginas, divididas em um Prefácio, 3 Capítulos – A história começa; A nossa história; e, Uma história maior -, um Epílogo e os Agradecimentos; mas, particularmente, pela disponibilidade de uma franqueza rara, que se desapegou de quaisquer eventuais resistências naturais do inconsciente humano.
É a história de um ser humano escrita para outros milhões deles; portanto, acima de rótulos, estereótipos e convenções. Michelle Obama compartilha sua existência, na dimensão exata do que isso representa, sem excessos de nenhuma natureza, o que permitiu não se perder nenhum pedaço da significância de todo o processo.
O posicionamento humano dela é presente todo o tempo; mas, é a sua forma de expressão diante dos acontecimentos que traz para o relato uma objetividade diante da vida, incapaz de omitir emoções, sentimentos, divagações, enfim... Naquelas páginas pulsa uma vida em palavras.
 Tudo isso é coisa rara na literatura! Poucos têm essa habilidade. Poucos têm essa disposição. Sobretudo, de falar sobre si mesmo sem cair em lugar comum, sem parecer idealizado demais, narcísico demais. Por isso, a leitura flui de uma maneira singular e especial. Em maior ou menor escala há uma reflexividade entre aquela história e o cotidiano de outros milhões, mundo afora. Rompem-se barreiras, obstáculos, de modo que suas palavras, tão acessíveis, não pedem mais do que um pré-requisito do leitor: querer ouvi-las.
“Minha História” propõe reflexões sociais importantíssimas, o que em vários momentos me fez relembrar as palavras de vários outros pensadores.  Victor Hugo, escritor francês, com sua citação “Mude suas opiniões, mantenha seus princípios. Troque suas folhas, mantenha suas raízes”. Chimamanda Ngozi Adichie, escritora nigeriana, em sua palestra ao TED Talk intitulada “O perigo da história única”, quando ela traça uma análise em torno da desumanização, que impossibilita a alteridade ou a percepção do outro 3. Angie Thomas, escritora norte-americana, em seu livro “O ódio que você semeia” 4. Simone de Beauvoir, filósofa e teórica social francesa, com sua citação “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os oprimidos”. E muitos outros. Aliás, a leitura de “Minha História” motiva uma genuína viagem mental.  
Então, quando cheguei ao final desse trajeto literário essa manhã percebi que estava extasiada. Descobri que a realidade é mesmo muito mais interessante do que as idealizações míticas, tão frequentemente exploradas pela sociedade pós-moderna. Como se cada palavra presente ali pudesse reorganizar as prioridades da vida humana, sem contar com esforços além do próprio bom senso, espírito humanitário e cidadão.  “Minha História” é uma sutil reflexão sobre os paradoxos que coexistem na busca pelo equilíbrio entre o caos e as zonas de conforto do ser humano. Portanto, uma leitura que vale muito a pena!



1 LLOSA, M. V. Em defesa do romance. Revista Piauí, São Paulo, n.37. Out. 2009. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/em-defesa-do-romance/. Acesso em: 22 jun. 2020.
2 OBAMA, M. Minha História. Tradução de Débora Landsberg, Denise Bottmann e Renato Marques. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018. Título original: Becoming.
4 THOMAS, A. O ódio que você semeia. Tradução de Regiane Winarski. Rio de Janeiro: Galera Record, 2017. 376p. Título original: The Hate U Give.


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