"Plante seu jardim e decore sua alma, ao invés de esperar que alguém lhe traga flores. E você aprende que realmente pode suportar, que realmente é forte, e que pode ir muito mais longe depois de pensar que não se pode mais. E que realmente a vida tem valor e que você tem valor diante da vida!“ — William Shakespeare


Atemporal...




Por Alessandra Leles Rocha




Cada dia mais penso que a humanidade deveria ler a obra de Shakespeare. Não, não é uma questão de mera erudição porque não se trata de uma leitura obrigatória no contexto original, poderia ser uma adaptação dentre tantas disponíveis no mercado livreiro. A questão está no fato dessa leitura ser um caminho particular para um modo especial de transformar palavras em espelhos do cotidiano nos oferecendo uma reflexão própria sobre a vida.
Esse inglês, falecido no século XVII, sabia como poucos mergulhar na essência humana e desnudar camada a camada o que exalava e transcendia dos indivíduos. Mais do que uma genialidade literária e linguística, William Shakespeare traduziu a humanidade nos seus vieses mais terríveis. O ciúme, a cobiça, a ira, o poder, a violência sem limites,... e o amor, em toda a sua passionalidade.
A atemporalidade de suas obras é tão fantástica que desconstrói, por exemplo, a importância tecnológica no século XXI para a construção de enredos pautados nas redes de intrigas e conspirações maquiavélicas. Afinal, suas personagens situadas entre os séculos XVI e XVII eram exímias nessa arte, sem a necessidade de nenhum artefato maior do que pena e papel. O que serve para nos mostrar que o terrível está em nós e não no mundo.
Desse modo, sem uma intenção objetiva, as obras de Shakespeare redimensionam o literário o configurando para além do entretenimento e da ficção, nos levando a pensar se a arte imita a vida ou se ambas são apenas lados de uma mesma moeda. Quaisquer semelhanças seriam mesmo mera coincidência? As obras abaixo ajudam a responder.
Quem nunca se questionou sobre a indefinição das identidades de fantasia e realidade presentes nos jogos amorosos? Esse foi o convite de Shakespeare em Sonhos de uma noite de Verão.  
Em tempos de tanta intolerância e conservadorismo, a reflexão sobre o antissemitismo proposta em O Mercador de Veneza traz um valor especial para essa leitura.
Diante da busca por igualdade de gênero, A Megera Domada abre espaço para as discussões sobre o papel do casamento, das conquistas amorosas e o conflito que se abre na guerra dos sexos.
A Tempestade remexe com os instintos de vingança, de amor, de conspiração, a partir do desequilíbrio entre o primitivo e o domado na aspiração humana.
A inconveniência imposta pelo poder, subjugando o amor. A tragicidade de Romeu e Julieta, infelizmente, embora comova plateias pelo mundo, ainda se materializa na realidade brutal do cotidiano.
Ser ou não ser? O homem em xeque diante da traição, da vingança, do incesto, da corrupção e da moralidade. Hamlet e sua complexidade tecem teias interessantes nos cenários contemporâneos.
Otelo, o Mouro de Veneza. Até onde o ser humano é capaz de ir, em nome do poder? Racismo, amor, traição, ciúme podem nos ajudar a responder a essa pergunta.
Poder e traição, na síntese da loucura. Isto é o que nos conta o Rei Lear.
Mas, há muito mais em Shakespeare. Muito mais de humano, de plausível, de real. Há um pouco de cada ser humano naquelas palavras, que não se prendem necessariamente a quaisquer rótulos sociais; pois, todos podem ser vítimas e algozes desses sentimentos e valores. Shakespeare nos nivela a uma mesma humanidade e rompe com as hierarquias, os protocolos: nobres e plebeus, tanto faz, todos são apenas gente de carne e osso.
De repente, a literatura quebra a nossa altivez. E, em pleno século XXI, talvez isso seja fundamental, na medida em que temos permanecido tão absortos em nossos casulos individuais, esquecidos de olhar para dentro e fora de nós mesmos, idealizando verdades infundadas, defendendo ilusões sem sentido, fazendo de nossa existência um vasto e inútil monturo.
Precisamos nos conhecer em profundidade antes de estabelecermos quaisquer juízos de valor sobre os outros, sobre o mundo. Esse é um golpe duro, mas essencial se há, de fato, uma pretensão sobre dias melhores. Shakespeare dizia que “morrer ignorante sabendo que tinha a capacidade de ser sábio, isto sim, é uma tragédia humana”; então...
Aproveite que hoje é sábado, que o fim de semana está só começando. Escolha uma obra de Shakespeare para ler. Há boas adaptações em filmes; mas, nada supera as palavras impressas. Enquanto se lê, a reflexão acontece simultaneamente. A leitura filtra o nosso pensamento e apura os nossos sentidos e só, assim, conseguimos verdadeiramente enxergar a vida além do nosso olhar.


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