Pare. Leia. Reflita.
Que
cara é essa?
Por
Alessandra Leles Rocha
Ei! Que cara é essa? Seria por
conta do relatório produzido pelo Instituto Gallup sobre a tristeza 1? Ou simples reflexo do que a humanidade
tem se permitido manifestar nos últimos séculos, hein?! Penso que precisamos dialogar.
Então, para início de conversa
voltemos aos primórdios e olhemos com atenção o ser humano. Lidar com a
realidade nua e crua da vida não foi não é e nem parece que será muito do seu
feitio. Aqui e ali, as pessoas estão sempre lançando as “sujeiras” sob o
tapete, fazendo “cara de paisagem” diante das dificuldades, invisibilizando o que
pode e o que não pode, ou melhor, não deve. Tudo para transformar o cotidiano
em um oásis idealizado, perfeito, cinematográfico. Só que esse malabarismo
postergante nunca acaba bem.
Somos o que somos e a vida é o
que é. Inusitada. Complexa. Etc.etc.etc.. Enxergar a vida como ela é deveria ser
cláusula pétrea da existência humana. Porque lutar contra o óbvio é sempre uma
luta inglória, uma perda monumental e irrecuperável; sobretudo, do ponto de
vista, do nosso conhecimento e desenvolvimento pessoais.
Mas, apesar disso, a raça humana
persiste e insiste em caminhar na contramão. Para isso esbanja criatividade,
malandragem, esperteza, como se fossem “os reis da mesa” e capazes de “dar nó
em pingo d’água” só para satisfazer os delírios de seu próprio ego sem limites.
E não posso negar como encontraram aliados de peso nessa corrida por
subterfúgios que os afastem da realidade, do cotidiano cruel e nada palatável.
Ciência, tecnologia, consumo,...
os elementos da Pós-Modernidade são instrumentos hábeis de manipulação da
realidade. O virtualismo oculta, mesmo que temporariamente, as verdades indigeríveis.
Tornam-se espaços de trânsito por um imaginário
sem tantas cargas, tantas obrigações, tantas regras, tantas frustrações; pelo
menos, essa “mentira doce” ou essa “verdade açucarada” é que é vendida por aí. Tudo
nesse ambiente contemporâneo aguça os sentidos, transforma as percepções, e
alivia as tensões como se as conduzisse para uma esfera inacessível, quase
delirante.
Então, de repente, chegam os
relatos da pesquisa do Instituto Gallup e rompem com essa “felicidade” de
folhetim. O espelho, ou melhor, a tela se quebrou e a verdade emergiu despida
da beleza mercadológica, isenta de Photoshop,
de cores vivas, de sorrisos e corpos perfeitos... Como se pairassem no ar as
canções, “ainda somos os mesmos...” 2, “todo
dia ela faz tudo sempre igual/ me sacode às seis horas da manhã / me sorri um
sorriso pontual / e me beija com a boca de hortelã...” 3.
Pois é. De supetão a vida nos colocou
na lona, à nocaute. Tanta correria. Tanta loucura. Tanto desatino diário para
fugir da verdade, sob a alegação de que ela nos adoece, ela nos mata
lentamente, ela nos entristece, nos amedronta, nos enerva... E apesar de tudo
que fizemos alguém grita em alto e bom tom, nos chama à razão, para dizer que nossos
“placebos alucinógenos” para fugir da realidade foram ineficazes.
Sim. “Tristeza, raiva, medo. Estes
são os sentimentos que predominam em 2018 em todo o mundo, indica relatório
global produzido pelo Instituto Gallup” 4.
Trata-se de uma análise das experiências
diárias positivas e negativas das pessoas com base em mais de 151.000 entrevistados
adultos, em mais de 140 países em 2018, que suporta diversas outras discussões
mundiais, incluindo a questão da Felicidade, como apontou a Organização das
Nações Unidas (ONU) em seu Relatório Mundial sobre a Felicidade, em 2019.
A verdade é que tudo se torna efêmero
demais na contenção dessa realidade que não se quer ver e nem enxergar; quando,
a pobreza, a violência, os deslocamentos forçados, ou o colapso dos serviços de
saúde e outras mazelas entram em cena. Os seres humanos não vivem em bolhas e
não há como construir felicidade ou se manter distante dos sentimentos
negativos e nocivos. Direta ou indiretamente somos atingidos pela realidade,
esteja ela onde estiver.
A melhor forma de perceber e
entender isso é olhando ao redor e verificando a quantidade de pessoas cada vez
mais psico e emocionalmente doentes, ou seja, pessoas em altos níveis de Estresse,
de Depressão, de Síndrome do Pânico, de Transtorno Compulsivo Obsessivo (TOC),
de Distúrbios Alimentares. A natureza da subjetividade das emoções
impossibilita o ser humano, em muitos momentos, de traduzir ou verbalizar;
então, é através do corpo que esses desconfortos encontram caminho para se
manifestar.
Então, quando isso acontece,
podemos constatar claramente que se todos os modismos, consumismos,
imediatismos contemporâneos estivessem dando conta de blindar a humanidade, os
resultados seriam outros, independentemente de pesquisas ou relatórios de
entidades governamentais e não governamentais. A questão é que a sociedade
tornou-se refém de si mesma e teima em não romper com essa zona de resistência,
tão desconfortável e cruel.
Ultrapassamos os limites da
individualidade para nos tornarmos narcisicamente individualistas. Se a
tristeza, a raiva ou o medo nos acompanham de maneira tão emblemática é porque
desaprendemos a essencial arte de conviver, de coexistir além de meros
artefatos tecnológicos. Talvez seja hora de refletir, como sugere a canção “pane no sistema, alguém me desconfigurou /
aonde estão meus olhos de robô? / eu não sabia, eu não tinha percebido / eu
sempre achei que era vivo...” 5, porque
tanta parafernália, no fundo só serviu para encobrir o real que, refutamos em
enxergar ou admitir, apesar de residir silencioso dentro da nossa verdadeira
carapaça.
Sidarta Gautama, conhecido como Buda,
por volta do século VI A.C. já dizia, “a
dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional”. Enxergar ou não a realidade
é uma escolha, a qual as pessoas precisam entender que não as isenta necessariamente
da tristeza, nem do medo, nem da raiva ou de quaisquer outros sentimentos
negativos. Mas, quando você se dispõe a enxergar a verdade como ela é, a
enfrentar a vida sem retoques ou artifícios, você se dá a oportunidade de
estabelecer o seu lugar como protagonista ou coadjuvante da história. Ciente do
papel que você deseja ocupar no mundo, você passa a entender o que é ou não
prioritário na sua vida, a tecer escolhas conscientes, a traçar metas responsáveis,
a depositar a felicidade aos pés de raízes doces, fortes e profundas. Portanto,
não se esqueça das palavras do escritor francês Gustave Flaubert, “Cuidado com a tristeza. Ela é um vício”.