Reflexões de Domingo...

Do profético ao real e/ou da arte ao cotidiano?



Por Alessandra Leles Rocha



Não importa se é de direita ou de esquerda. A verdade é que o poder inebria e cega os seres humanos, tornando-os incapazes de enxergar o outro como seu semelhante. O que temos visto nos últimos dias sobre a Venezuela não tenho certeza de que é o pior; mas, apenas uma gota d’água a mais em um processo que se arrasta há tempos.
E é nesse ponto, nesse “há tempos”, que o absurdo se configura mais dramático porque demonstra a existência de uma omissão coletiva, por parte daqueles que nada fizeram para conter a extensão e a progressão do caos venezuelano. Simplesmente assistiram de camarote o esfacelamento de uma sociedade pela dilapidação da sua dignidade, como se os quatro cavaleiros do Apocalipse – a peste, a guerra, a fome e a morte – viessem cumprir a visão profética do apóstolo João.
Só quando a realidade da migração forçada dos venezuelanos começou a se cumprir é que a mobilização internacional começou a acontecer. Quase nada de altruísmo verdadeiro; mas, o receio do impacto que o fluxo migratório sobre suas sociedades poderia causar. Os problemas gerados pelo governo venezuelano estavam sendo passados adiante, para a responsabilidade de terceiros; como se as sucessivas irresponsabilidades fossem compartilhadas à revelia sem o menor senso e pudor.
A situação venezuelana é quase comparável ao que José Saramago descreve no seu Ensaio sobre a Cegueira; afinal, “a cegueira também é isso, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”. Onde não há esperança se aflora a barbárie, a selvageria na luta pela sobrevivência. Saramago pretende nesse livro fazer uma crítica ao capitalismo, como a grande doença que cega à humanidade, e o comunismo como a única forma de garantir a ordem e a justiça.
No entanto, eu divirjo dessa opinião, na medida em que todo esse caos de destruição humana é fruto de algo acima de teorias e doutrinas econômicas e sociais, ou seja, do próprio apetite humano pelo poder, o que significa também dispor e acumular riquezas. A história da humanidade mostra o seu fascínio pelo dinheiro, a adoração eterna pelo Bezerro de Ouro.
Um espelho para essa realidade, a qual comunga a Venezuela e outros tantos países pelo mundo, então, é a peça O Avarento, de Molière.  Escrita em 1668 ela é atemporal, pois trata do TER, do POSSUIR, do ACUMULAR; ao ponto de que a única coisa que falta é o dinheiro, porque este está acumulado. E aí começa a se tecer as relações de interesse, as bajulações, as trocas de favores,... Para alcançar tais objetivos, o populismo se torna a base governamental para diversas sociedades. Pelo discurso passional e inflamado, as massas são controladas enquanto seus governantes perpetuam-se no poder e acumulam a riqueza nacional.
Assim, enquanto a população padece a sua indignidade cidadã, o governo se legitima pelo Argumentum ad populum (apelo à multidão), que significa dizer que determinada ideia é válida, adequada ou boa, porque a maioria da população a aprova. Um exemplo disso são os plebiscitos ou as eleições realizadas de maneira contestável, cuja manipulação favorece ao “apelo à multidão”. Há 17 anos a Venezuela vive essa realidade descabida.
Sabe, Nacionalidade e Identidade em um mundo de migração internacional é uma questão fundamental a se pensar, na medida em que Estados e sociedades devem se questionar sobre os efeitos desses movimentos tanto para coesão social quanto ao próprio conceito de cidadania e pertencimento social. O fato dos novos migrantes serem mais diversos culturalmente fomenta o potencial de conflitos e tensões dentro das sociedades, havendo a promoção e a consolidação do racismo e da intolerância de ambos os lados.
Então, como diz a canção do U2, “Não posso acreditar nas notícias de hoje / Não posso fechar os olhos e fazê-las desaparecer / Por quanto tempo, por quanto tempo teremos que cantar esta canção / Por quanto tempo, por quanto tempo?” 1. A intervenção internacional no caso da Venezuela deveria ter se iniciado há muito. Não era preciso que o acirramento das forças chegasse ao ponto em que chegou agora. Vidas, milhares delas, poderiam ter sido poupadas. Doenças e miséria também. Crises humanas e identitárias, em decorrência da humilhação e da indiferença.
Restabelecer a ordem e a paz depois de ter negligenciado a vida parece, um tanto quanto, contraditório; mas, é quase sempre o que acontece. Portanto, quanto tempo mais, teremos que esperar por dias de paz sem vestígios de guerra? Afinal, dentro ou fora das trincheiras, não há como servir a dois senhores ao mesmo tempo.




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