Por que uma história de mão única?

Por que uma história de mão única?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não precisamos ser amigos. Mas, também, não precisamos ser inimigos. O grau de beligerância que inflama e consome a sociedade contemporânea deseja acabar com o contraditório e estabelecer uma história de mão única.

Mas, se engana quem pensa que isso signifique viver sob o signo de uma única perspectiva, de um único ponto de vista, de uma única matriz ideológica. Não. É bem pior. A ideia da massificação homogeneizante tem como objetivo maior facilitar o controle e a manipulação social, por parte do grupo que detém a escrita dessa história.

De modo que esse contexto é constituído através da exasperação da violência, que é o caminho mais viável para se atingir o silenciamento e a alienação coletiva, os quais fomentam o sentimento de medo. No entanto, o que se esquece é de que esse é um limite meramente ilusório e pouco eficaz.

Afinal de contas, o que pensam, sentem, sonham, os indivíduos, não é passível das ingerências do mundo. Da porta para dentro de cada um, o que regem são leis próprias e estabelecidas a partir de um conjunto identitário de crenças, de valores, de princípios, de convicções e de conhecimentos. Para mudar o que quer que seja, por mínimo que seja, é preciso que a pessoa esteja disposta e aberta a fazê-lo.

Vamos e convenhamos que não há nada de extraordinário nisso! Sendo o ser humano essa criatura em franco processo de construção, é parte da experienciação do mundo e da vida a proposição de ajustes, de rupturas, de desconstruções, de arranjos e rearranjos, ao longo do caminho.

Se do nascimento até a morte transitamos por tantos corpos, tantos momentos, tantas lembranças, tantas demandas diferentes, é natural que sejamos convidados a, pelo menos, considerar a hipótese de visitar as nossas próprias perspectivas.

Mas, para isso, considerando que a espécie humana não precisa das bençãos da sua manada, porque, afinal, ela não tem uma, não deveria haver razões para tanto falatório e agressividade gratuita, quando ainda não se chegou a um consenso comum a respeito disso ou daquilo.

Talvez, esse consenso nunca chegue! O que importa é a diversidade dos pontos de vista, a criar uma paleta de possibilidades de análise, as quais algumas podem, inclusive, evitar problemas bastante sérios, caso fossem desconsideradas.

Lamento; mas, somos iguais só até a página dois! Dali em diante, nossas marcas identitárias precisam e devem se expressar. É a nossa singularidade, nos seus mais distintos aspectos, o que nos diferencia no mundo.

Qualquer movimento que interfere e contraria essa lógica natural, é muito grave! A liberdade existencial tolhida pela massificação ou homogeneização social pode trazer consequências inimagináveis dentro do coletivo humano.

No entanto, vale ressaltar algo muito importante. Todos nós, independentemente, de quem somos no mundo, já nascemos submetidos aos ordenamentos jurídicos e sociais existentes. Portanto, nossa liberdade existencial tem que caber dentro desses limites, para que não nos tornemos transgressores dentro do contexto ao qual estamos inseridos.

Desse modo, queiram ou não aceitar, são esses limites que nos garantem a possibilidade de equacionar equilibradamente a liberdade existencial de cada um, dos milhões de seres humanos, que transita pela Terra.

Dito isso, o que a liberdade existencial deve sempre se colocar em oposição é em relação aos movimentos massificadores e homogeneizantes, porque eles nada tem a ver com a estrutura dos limites sociais.

Como expresso inicialmente, tratam-se de construções ideológicas com o objetivo claro de aprisionar os indivíduos a fim de facilitar o seu controle e a manipulação social, sem que, na verdade, eles tenham, muitas vezes, a devida consciência a respeito.

Para isso, eles são impactados por diferentes estratégias de linguagem que circulam facilitadas pelas mídias sociais contemporâneas. As Fake News são um dos exemplos mais importantes nesse processo.

E é assim, que o mundo aparentemente dividido, bipolarizado, de repente, passa a contar e a defender uma única história. Bom, nem preciso dizer o quanto isso é perigoso!

Como escreveu Chimamanda Ngozi Adichie, “A história sozinha cria estereótipos, e o problema com estereótipos é que não é que eles não são verdadeiros, mas que eles são incompletos. Eles fazem uma história se tornar a única história” e, por isso, “É impossível falar sobre a história única sem falar sobre poder”.

Daí a ameaça! A história única interrompe o fluxo natural da evolução e do progresso das sociedades, em todo o seu potencial de pluralidade e de diversidade. E não nos esqueçamos de que o mundo já teve seus fantasmas horrendos, nesse sentido.

Um dos exemplos clássicos foi a Eugenia, no século XIX, cujo modelo científico defendido pretendia selecionar seres humanos que pudessem constituir uma raça melhorada.

Acontece que essa tal raça estaria à disposição de expressar a existência de uma única história, de uma única possibilidade, como se deixasse o mundo refém de um único ponto de vista já pré-definido.

Portanto, diante do cenário contemporâneo que busca intensificar a massificação e a homogeneização da sociedade, lembre-se de que “Nem todas as verdades são para todos os ouvidos, nem todas as mentiras podem ser reconhecidas como tais. (...) Certas coisas se sentem com o coração. Deixa falar o teu coração, interroga os rostos, não escutes somente as línguas ...” (Umberto Eco).

Somente dessa maneira, você vai compreender que “Você não pode escrever um roteiro em sua mente e depois se forçar a segui-lo. Você tem que ser você mesmo” (Chimamanda Ngozi Adichie)

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