Quanto custa os velhos hábitos?
Quanto
custa os velhos hábitos?
Por
Alessandra Leles Rocha
Entendido como um ano atípico, 2020
obriga a todos os habitantes do planeta Terra a analisarem seus desafios e
superações não apenas sob uma ótica individual; mas, especialmente, coletiva
dos fatos.
Sendo assim, um ponto que chamou
bastante atenção no início da Pandemia aqui no Brasil foi a imensa dificuldade
de abastecimento de insumos médico-hospitalares para atender as demandas da doença
em franca expansão. De equipamentos de proteção individual (EPIs) e
medicamentos aos essenciais respiradores, o país se viu em extrema dificuldade
de aquisição desses produtos; visto que, sua produção estava concentrada em outros
países, incluindo a própria China, epicentro inicial da Pandemia.
Com as fronteiras fechadas por
conta das medidas sanitárias restritivas impostas pelas nações ao redor do
globo, essa dificuldade se somou ao fato da ampliação exponencial da procura em
detrimento da oferta; bem como, das próprias limitações produtivas decorrentes
do isolamento social estabelecido em diversas cidades. De modo que o resultado
dessa conjuntura não só elevou o preço desses produtos no mercado
internacional; mas, acirrou a disputa pela aquisição entre as grandes potências
e o restante do mundo.
Fato que imediatamente apontou a
necessidade global de se repensar acerca da distribuição produtiva, a fim de
evitar eventuais novos gargalos, especialmente, em situações de emergência como
a da Pandemia. Percebeu-se na prática a necessidade de ter várias opções de
mercado capazes de produzir e atender satisfatoriamente em quaisquer conjunturas.
Um raciocínio simples e lógico que ultrapassa as demandas de insumos
médico-hospitalares e alcança todas as eventuais necessidades de consumo que o
mundo venha a expressar.
Mas, eis que de repente, fomos
surpreendidos pela alta no preço do arroz, consumido aqui no Brasil, e a busca
por entender o ocorrido perpassa justamente pela incapacidade do país em
atender a demanda nesses tempos pandêmicos. Acontece que, apesar das vastas
áreas de produção agrícola e de pecuária, presentes na geografia nacional, há
séculos o olhar desses produtores se volta para o mercado internacional
prioritariamente.
O velho e antigo Brasil dos latifúndios
de exportação que não se incomoda em abrir mão da sua subsistência produtiva para
lucrar em moedas estrangeiras nos mercados internacionais, deixando a cargo do
governo federal suprir as deficiências das demandas internas por meio da
importação. O que significa que há algum tempo, inclusive, o país se absteve da
manutenção de estoques reguladores mais robustos, no propósito de reduzir tal prática.
Então, enquanto o restante do mundo
desacelerava o ritmo das exportações por conta da Pandemia, o Brasil optou por
surfar na onda de um dólar mais valorizado e comercializou sua produção
agropecuária como nunca. Imensa alegria para os produtores que puderam, de
algum modo, ressarcir parte do ônus de produção; visto que, os insumos por eles
utilizados – fertilizantes, defensivos, sementes, maquinários – são em sua
maioria cotados em dólar. Então, se vendem na moeda americana conseguem mitigar
um pouco os custos de seus investimentos produtivos.
Entretanto, por aqui a dinâmica social
do cotidiano fez com que as pessoas constituíssem novos hábitos de consumo;
sobretudo, por conta do isolamento e distanciamento social. O que tornou os
itens de alimentação prioritários nas listas de compras das famílias brasileiras,
incluindo os beneficiados pelo auxílio-emergencial disponibilizado pelo governo
federal.
As limitações de circulação pelas
cidades fez com que muitas delas comprassem alimentos em maior quantidade para
evitar o deslocamento e os riscos de contaminação. Bares, restaurantes e
lanchonetes, apesar de fechados para atendimento presencial ao público, também
investiram na produção de comida para delivery; o que colaborou para a
consolidação de uma demanda “atípica” de produtos agropecuários.
Assim, o inevitável aconteceu. Sob
a chamada “lei da oferta e da procura” itens como o arroz, as carnes, o leite e
laticínios, algumas frutas, legumes e verduras sofreram um aumento
significativo e trouxeram um impacto negativo para o orçamento doméstico nacional.
Isso, sem contar, a elevação sofrida pelos combustíveis; posto que, são eles os
responsáveis pelo transporte de bens e produtos em todo o país, o que incide no
valor do frete repassado no valor final destes.
Lá se foram seis meses, desde que a
situação de Pandemia foi declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), um
tempo que não parece pequeno para se desprezar em termos de análise e
planejamento. Mas, a sensação que se tem é de que, mesmo se não tivesse
acontecido algo tão devastador quanto o COVID-19, estaríamos de qualquer modo
vulneráveis aos impactos econômicos por uma simples questão de divergência de
foco.
Com ou sem Pandemia os estoques
reguladores seguiriam o curso aquém do necessário. As esfuziantes notícias de
recordes de produção do agronegócio estariam tangenciando as expectativas de
exportação ao contrário das demandas de abastecimento interno. As flutuações do
dólar continuariam alegrando o mercado de capitais enquanto persistiriam em
impactar com severidade bens, serviços e produtos, cujos valores são
economicamente atrelados a ele. Enfim... há uma relativa responsabilidade por
parte do COVID-19 em tudo isso.
Portanto, a conclusão que se chega
é a de que o Brasil administra a sua economia cada vez mais com olhos coloniais.
Cada vez mais subserviente aos interesses estrangeiros. Cada vez mais produtor de
matéria-prima para exportação e menos de produtos manufaturados. Cada vez mais
indiferente a sua produção científica e tecnológica e mais disposto a pagar
pelos royalties da importação desses produtos. Cada vez mais
dilapidador dos recursos naturais renováveis e não renováveis. ...
De modo que nessa toada, a
população brasileira caminha rumo a ser, cada vez mais, o espelho das seguintes
palavras do poeta João Cabral de Melo
Neto, no clássico “Morte e Vida
Severina” 1: “E se somos Severinos / iguais em tudo na vida, / morremos de morte
igual, / mesma morte severina: / que é a morte de que se morre / de velhice
antes dos trinta, / de emboscada antes dos vinte, / de fome um pouco por dia /
(de fraqueza e de doença / é que a morte Severina / ataca em qualquer idade, /
e até gente não nascida). / Somos muitos Severinos / iguais em tudo e na sina:
/ a de abrandar estas pedras / suando-se muito em cima, / a de tentar despertar / terra sempre mais
extinta, / a de querer arrancar / algum roçado da cinza. / Mas, para que me
conheçam / melhor Vossas Senhorias / e melhor possam seguir / a história de
minha vida, / passo a ser o Severino / que em vossa presença emigra. [...]”2.