Não mais que, momentaneamente, isolados...


Não mais que, momentaneamente, isolados...




Por Alessandra Leles Rocha




Não deixa de ser um alento verificar que o isolamento social, forçado pelas circunstâncias da Pandemia do COVID-19, foi incapaz de propiciar uma hibernação dos sentidos humanos. A iniciativa de milhares de pessoas em saírem às ruas de diversos lugares do mundo para protestar contra o racismo, o fascismo e tantas outras questões de relevante importância social é muito emblemática. A vida, ainda, importa.
De certo modo, o mundo que adoeceu pelo vírus é um mundo que já vem doente, há tempos, por outras razões não menos importantes. O que clamam essas vozes urbanas é tão somente o reflexo de discursos equivocados e absurdos, os quais instituídos ao longo dos séculos foram se perpetuando na naturalização de práticas reconhecidamente impróprias e condenáveis.
George Floyd deixou de ser uma vítima para dar rosto a milhões de outras. Para romper com a banalização estatística da dor, da humilhação, do preconceito, do descaso, da invisibilização social que arrebata o mundo, em ciclos de horrores frequentemente repetidos e para os quais as medidas contrárias se arrastam na esteira da indisposição voluntária em fazer.
A partir do momento em que a história da humanidade é marcada pela recorrente e vexatória prática da escravização, a sociedade já deveria ter avançado muito nessa discussão. Ao permitir que um ser humano seja tratado como objeto pertencente a outro, a consciência biológica e comportamental que deveria residir em todos, se esvai como fumaça e abre precedente a outras e piores práticas dentro das relações sociais. A escravização foi, portanto, uma porta de entrada para a permissão as demais formas de indignidade e exploração da espécie humana.
De modo que elas tendem a se transformar a partir das conjunturas temporais, mas não se desprendem do arcabouço ideológico cronificado que as sustentam e, de algum modo, as legitimam. A constante ausência de questionamentos em torno da realidade só faz favorecer a naturalização dos processos e dos horrores. Por isso é tão difícil romper com essas amarras tão bem tramadas na subjetividade de um consciente coletivo.
Daí a necessidade de um pouco mais de atenção e disposição para enxergar a realidade contemporânea e se deparar com a sutileza perversa que habita o cotidiano de muitos lugares do planeta. Quem sofre, às vezes, fala, grita; mas, de repente se cala, porque aqueles que agem e permitem a legitimação dessa carta de desigualdades instituídas se abstêm por completo da responsabilidade ética e moral que deveriam ter.
Observe, por exemplo, o silêncio que reside na própria Pandemia. Os mais vulneráveis aos impactos dela são justamente aqueles que vivem abaixo da linha de visão de quem tem as melhores condições e oportunidades. De modo que eles se infectam mais pelo vírus. Transmitem mais pela precariedade das condições de moradia, saneamento básico e transporte. Morrem mais pela inacessibilidade médico-hospitalar e pelas condições de insalubridade preexistentes.  Enquanto poucos falam a respeito... “eles não podem respirar” 1.
Infelizmente, há muitos por aí nessa situação. O não respirar para eles vai além de não ter o ar entrando nos pulmões, em razão da asfixia; mas, de não dispor das condições e direitos fundamentais para existência humana. De não ter um trabalho que lhes permita sobreviver. Ou uma moradia.  Ou uma alimentação adequada e satisfatória as necessidades diárias de um ser humano. Ou uma política de saúde. Ou uma política de segurança. Enfim... eles sobrevivem ofegantes por um sonho de dignidade, liberdade e respeito.
Então, nada mais significativo do que lembrar que vidas negras importam. Vidas indígenas importam. Vidas miseráveis importam. Vidas doentes importam. ... Todas as vidas importam. Cada indivíduo tem um papel social e vital incalculável para outros tantos no seu horizonte geográfico e histórico. A perda de um é simbolicamente a perda de quantos mais? Em fração de segundos ela faz desconstruir os fragmentos da sociedade e desestabilizar os equilíbrios fundamentais de muitas vidas.
A verdade é que a humanidade não está mais que, momentaneamente, isolada. Tanto que a importância da vida falou mais alto e fez pulsar e impulsionar o caminhar pelas ruas e avenidas no tempo presente. A chama de uma consciência indignada foi acesa e, oportunamente, desencadeou o alerta para o fato de que “Apenas quando somos instruídos pela realidade é que podemos mudá-la” (Bertolt Brecht).

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