Reflexões sobre a Desigualdade...
Reflexões
sobre a Desigualdade. Antes tarde do que nunca.
Por
Alessandra Leles Rocha
Vista do espaço a
Terra é apenas mais um ponto suspenso numa imensidão silenciosa e escura. De perto,
bem de pertinho, são pouco mais de 7,7 bilhões de seres humanos coexistindo nas
dimensões de uma esfera flutuante. Mas, de repente, eu me pergunto se cada um
tem consciência disso. Pode parecer estranha essa indagação; mas, não é. No fundo
sabemos que há um manto de invisibilidade que recobre a humanidade e, por isso,
muitos não conseguem distinguir “as sutilezas da vida”.
A condição humana nos
faz diferentes e isso é maravilhoso. Não somos obras carimbadas e acabadas que
se esbarram por aí. Temos identidades singulares que nos garantem traços de
especificidade geniais, nos alçando a uma autoralidade indiscutível. E tudo
isso seria indefectível se tamanha diferença não tivesse extrapolado os próprios
limites e feito surgir diante de nossos olhos um conjunto de linhas divisórias,
capazes de se aprofundar pelos terrenos da alma.
Da beleza grandiosa
dessa diferença humana se destacou o intelecto, a capacidade de ler e interpretar
o mundo, de construir, de inventar, de desenvolver habilidades e capacidades variadas.
Descobriu-se, então, que os sonhos não tinham limites. Poderíamos mais, muito
mais. De modo que a inteligência desprendeu-se além do ser e rendeu-lhe glórias,
triunfos, riquezas e poder; enquanto a vida adaptava-se aos novos rumos.
O que, lógico, não
aconteceu da noite para o dia. A diferença sobre a qual me refiro foi tecida
processualmente e, talvez, jamais tenha um fim. Outros valores e princípios foram
incorporados e trouxeram um deslocamento para os indivíduos dentro da
sociedade; o que significa que essa hierarquização colocou fim a uma concepção
de igualdade humana. Essa diferença nos trouxe a desigualdade.
Sim, a desigualdade
nos distanciou e nos fez desaprender o valor humano, genuíno e igual a todos. Um
discurso disseminou-se e penetrou no inconsciente coletivo, desqualificando a essência
para enaltecer as diferenças imputadas pelo desenvolvimento e o progresso
social. Embora humanos não seríamos mais iguais. Deveríamos ser analisados e distribuídos
de acordo com a nossa representação e participação dentro da sociedade. Assim, haveria
senhores e escravos, nobres e plebeus, ricos e pobres, burgueses e
proletários,... A perversidade, então, fez-se presente.
Ora, um ser humano
será sempre um ser humano. Suas necessidades, seus sonhos, suas esperanças,
seus sentimentos, absolutamente nada em si mesmo deixa de pulsar por mera
questão de classificação ou nomenclatura. Mas, no afã de atender aos novos
pressupostos, fizeram engolir a seco essa “verdade”, essa desigualdade. E quanto
mais rodopios o planeta dá em torno de si e do Sol, mais acirrada a
desigualdade se afirma entre nós.
Assim chegamos ao
século XXI. Assim chegamos ao dia de hoje, em que as mídias nacionais não
cansam de noticiar que a desigualdade no Brasil aumentou, ou seja, “segundo o
IBGE, um décimo da população concentra 43% da massa de rendimentos. O 1% da
população com maior renda (R$27.744) recebe quase 34 vezes mais do que os 50%
de menor ganho (R$820)” 1.
Talvez seja esse o ônus
a se pagar pela indiferença com que se trata a desigualdade. Preferir invisibilizar,
deturpar, esconder, negligenciar é uma opção, mas como tal, no fim das contas apresenta
a fatura. Não dá para passar os dias empurrando “a sujeira sob o tapete” sem
que ela acabe se esvaindo pelos cantos. Justamente, porque nesse caso estamos
falando de seres humanos.
O hábito de olhar
para o próprio umbigo e considerar a si mesmo o centro do universo, promoveu essa
deformação social. Tão absorto na sua própria realidade, o ser humano não
enxerga um palmo a frente do nariz, ou de um lado, ou de outro; portanto, não
percebe quantos padecem ao seu redor.
Seja na perspectiva
do mundo, ou do Brasil, a verdade é que a desigualdade existe em face da
diferença de oportunidades e de respeito que distribuímos dentro da sociedade. Embora
a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH, 1948) estabeleça em seu
artigo primeiro que “todos os seres
humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, dotados de razão e de consciência,
devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”, sabemos que
na prática não é assim.
Do mesmo modo em
que a Constituição de 1988, denominada Constituição Cidadã, manifesta em seu
artigo 6º que “são direitos sociais a
educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer,
a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência
aos desamparados”, sabemos que o exercício dessa cidadania não está ao
alcance de todos.
E essa não
efetividade das palavras é que consolida, indubitavelmente, as diferenças, a
desigualdade. É como se não houvesse quaisquer tipos de desconforto ou de
constrangimento diante da ausência de empatia. Conviver com outro o vendo em
condição adversa, degradante, humilhante se torna banal, normal. Só que ao
desconectar o seu senso de empatia o ser humano não percebe o grau de
vulnerabilidade que ele estabelece para a sua própria existência; pois, haverá
alguém que pense o mesmo em relação a ele.
Há dois anos, a exposição
“Caminhando em seus Sapatos” 2 no Museu da Empatia, no Parque do
Ibirapuera, em São Paulo, possibilitou a milhares de pessoas perceberem o mundo
pela perspectiva do outro. Por dez minutos, calçados com sapatos de outras
pessoas, os visitantes puderam caminhar ao mesmo tempo em que ouviam a história
do dono daquele sapato. Eram 25 pares de sapatos. Eram 25 histórias de vida. Eram
25 possibilidades de aprender a não julgar. Eram 25 caminhos para romper com a
invisibilidade, com a desigualdade. A intenção nunca foi conclamar as pessoas
ao despojamento pleno e completo; mas, romper correntes e resgatar a essência humana.
A verdade é que grande
parte de nossos inimigos, de nossos problemas e mazelas sociais, são frutos da
nossa própria projeção e idealização equivocadas. Em algum momento, de alguma
forma, os invisíveis irão querer se fazer visíveis. Irão querer sair da
opressão, da submissão, da subserviência,... e esse processo tende a ser difícil,
conflituoso.
Ora, estamos
falando de seres humanos como qualquer um de nós. Pessoas que querem ser aceitas,
querem pertencer, querem dignidade, querem respeito. Quem não se lembra da obra
Frankenstein ou o Prometeu Moderno,
de Mary Shelley? As diferenças afastam. A desigualdade abandona. O ser humano ao
negar a sua própria espécie, nega a si mesmo; nega absolutamente que todos
precisam de todos nessa vida.
Pois bem, diante da
desigualdade que se cultua no silêncio das omissões perversas do mundo, há
sempre uma chama tremulante sem saber quando será o momento de entrar em cena. Nas
esquinas imprevisíveis da vida pode ser numa bolsa de sangue. Em um transplante
de órgãos. Uma mão estendida em meio à enchente. ...Mas será que nessas horas
de aflição e desespero você vai se lembrar de que existe desigualdade no mundo?
Vai se preocupar com o outro? Tomara que sim. Antes tarde do que nunca.
Pequenos passos podem sim, sinalizar grandes transformações.