Crônica de Domingo


Sobre flores, frutos e sementes




Por Alessandra Leles Rocha




Um olhar raso sobre a vida é sempre preocupante; afinal, viver é um ato de extrema complexidade e esbarra em conjunturas que precisam ser medidas e pesadas adequadamente para evitar desdobramentos, os quais, talvez, nem possam ser revertidos. E dentre tantas questões cotidianas pipocando entre nós, me debrucei a refletir quanto aos agrotóxicos. A recém-alteração na classificação presente nos rótulos e a liberação de um número bastante significativo de tipos desses defensivos não deveria nos passar despercebido.
Conhecidos por garantir a produtividade e combater pragas e doenças nas lavouras, os agrotóxicos (ou defensivos agrícolas, pesticidas, praguicidas, biocidas, agroquímicos, produtos fitossanitários), na verdade, foram criados a partir de demandas que o próprio ser humano desencadeou. Sim, a displicência com a qual a humanidade sempre interviu no uso e ocupação do solo, consequentemente gerou desequilíbrios que culminaram, muitas vezes, com a incompatibilidade entre a produção agrícola e a presença de organismos e microrganismos capazes de destruí-la. Daí a necessidade de criar alguma coisa que pudesse frear esse processo destrutivo nas lavouras.
Em um primeiro momento, os agrotóxicos pareceram mesmo à solução e garantiram resultados satisfatórios. Mas, com o passar do tempo e a recorrência das aplicações, como acontece com qualquer produto químico houve uma consolidação da resistência tanto das pragas e agentes patológicos quanto do próprio ambiente. Sem contar que houve, também, uma ruptura da cadeia alimentar, de modo que a redução de algumas pragas permitiu o aumento de outras que eram seu alimento natural. Um ciclo nocivo se estabeleceu nesse processo.
Um dos aspectos mais importantes e pouco debatidos sobre esse efeito dos agrotóxicos diz respeito à polinização. Independentemente da vontade humana, a manutenção da Natureza depende em grande parte desse processo que consiste na transferência dos grãos de pólen (células reprodutivas masculinas) para o receptor feminino, que pode ser desse indivíduo ou de outro da mesma espécie.
E são vários os recursos utilizados pela natureza para polinizar, ou seja, o vento (anemofilia), os insetos (abelhas, vespas e moscas – entomofilia), besouros (cantarofilia), mariposas (falenofilia), aves (ornitofilia), anfíbios e répteis (herpetofilia) e a água (hidrofilia). É importante ressaltar que há uma especificidade entre o tipo de polinização e a espécie vegetal, de modo que apesar dessa diversidade de processos eles não satisfazem à vegetação como um todo. Então, a dispersão de produtos químicos (agrotóxicos) no ambiente tem efeito direto na polinização e, consequentemente, na biodiversidade; incluindo a própria oferta de alimentos.  
É preciso entender que a experimentação em laboratório, de qualquer produto, acontece sob condições ideais e controladas; ali, naquele espaço, tudo é medido, pesado e pensado. Mas, quando se vai para o campo, a situação é outra. Não há como controlar as intempéries do clima. Não há como controlar exatamente a quantidade de uso dos defensivos por parte dos funcionários das propriedades rurais. Não há um controle quanto à água utilizada para a tríplice lavagem dos vasilhames de agrotóxico, antes do descarte; de modo que, resíduos podem ser dispersos no ambiente sem controle. Enfim...
Enquanto o olhar humano se preocupa em garantir a produção agrícola de produtos de grande interesse comercial – soja, milho, trigo, feijão, café etc. – pulverizando as lavouras com diferentes tipos de agrotóxicos, cada vez mais resistentes, o meio ambiente está literalmente a mercê dos acontecimentos advindos dessa utilização. Já não bastassem os desmatamentos para ampliação das fronteiras agrícolas de exportação, o uso de agrotóxicos eleva ainda mais a extinção de agentes polinizadores e compromete a diversidade e manutenção dos biomas naturais; bem como, de diversos vegetais de consumo humano.
Aliás, a agricultura alimentícia é dependente da entomofilia, especialmente das abelhas. “O que acontece é que as abelhas precisam buscar néctar e pólen das flores e elas acabam visitando as plantações, e esse uso de agrotóxicos, que aqui no Brasil está se tornando cada vez mais intenso e prejudicial, acaba por levar à morte as abelhas” 1.
Já parou para pensar que você pode chegar a um supermercado e, de repente, começar a perceber uma limitação constante na diversidade de frutas, verduras, legumes e flores que não é causada pela sazonalidade? O desaparecimento na agricultura alimentícia, por exemplo, representa um empobrecimento na qualidade nutricional para as pessoas, no que diz respeito às vitaminas, sais minerais e algumas proteínas.  O desparecimento das flores além de representar um prejuízo estético ao equilíbrio mental do ser humano trata-se da dizimação de inúmeros exemplares do reino animal.
Há tempos o homem se concentra na produção agrícola em larga escala e, infelizmente, ainda não conseguiu afastar sua espécie da fome e da subnutrição. E em nome dessa produção não se medem esforços para garantir grandes extensões de terra, inovações tecnológicas, produtos químicos e etc. Esse olhar centrado no economicamente viável se esquece de que há vida no planeta e esta se encontra cada vez mais distante de usufruir algum benefício nesse processo.
O pior é perceber o quanto as pessoas estão “rasificando” o seu olhar, o seu pensamento. Enquanto bradamos a satisfação dos superávits agrícolas, que no fim das contas nem chegam a trazer algum retorno prático para os pobres mortais e conseguidos por meio de práxis distantes do equilíbrio proposto pela sustentabilidade socioambiental, ao nosso redor o número de doentes com câncer, doenças degenerativas, doenças raras explodem a olhos vistos. Pessoas que, certamente, não sobreviverão o que estimam as expectativas de vida.
É preciso refletir sobre o fato de que em um mundo onde a desigualdade social impera e a pobreza expõe níveis de insalubridade absurdos, os efeitos cumulativos de produtos químicos e seus rejeitos tende a causar danos muito mais rápidos do que em um individuo saudável e bem nutrido.  Afinal de contas, a poluição e contaminação oriundas da utilização desenfreada desses, incluindo agrotóxicos, faz com que bebamos água nem tão potável assim, ou respiremos um ar repleto de particulados altamente perigosos, ou nos alimentemos de produtos repletos de contaminantes impossíveis de serem eliminados pela lavagem ou cozimento. A verdade é que não bastam valores de referência, de tolerabilidade, quando se trata da saúde e segurança humana.
Maurício Ceolin certa vez escreveu “se não houver frutos / valeu a beleza das flores / se não houver flores / valeu a sombra das folhas / se não houver folhas / valeu a intenção da semente” 2. Mas, diante do exposto, penso que se não houver flores, nem frutos e nem sementes, talvez, sejam por causa da nossa própria indiferença e irresponsabilidade, do nosso olhar continuamente tão raso sobre a vida.


Comentários

Os textos mais lidos