Para ler, pensar e refletir!
Antes
da Curva Tamburello
Por
Alessandra Leles Rocha
Desde que me tornei
escritora, Ayrton Senna da Silva já foi tema de alguns dos meus textos. Não só
pela figura emblemática que ele foi; mas, particularmente, porque sua morte
repentina deixou um inconformismo pairando no ar.
Lá se vão 25 anos
desde aquele fatídico primeiro de Maio, no GP de San Marino, em Ímola, na
Itália. Mas, depois de um quarto de século, a minha motivação em escrever sobre
o Ayrton não se rende necessariamente as lembranças de um ídolo sensacional;
mas, uma reflexão maior em torno daquela trajetória, tão breve.
O talento, a
capacidade técnica, o arrojo,... e quaisquer outras qualidades e características
utilizadas para definir o Ayrton são de conhecimento público. Como em quaisquer
profissões, ele foi um daqueles destaques preciosos, que surgem raramente no
cenário mundial. É claro que sendo assim, ele despertou os extremos entre os
que disputavam com ele o rol da fama, em uma linha muito tênue e perigosa entre
a aceitação e o desdém.
Ayrton não foi o
nosso primeiro campeão no automobilismo; mas, acenou como o último. Por mais
duro que seja manifestar essa opinião, ela não está desamparada de fundamentos.
Temos sim, muitos talentos, jovens promessas, mas é nesse ponto que entra a tal
reflexão que venho tecendo nesses 25 anos.
A personalidade
firme e combativa de Ayrton Senna o conduziu ao limite dos limites. Ayrton foi
para si e para o Brasil a voz que não podia ser contida. Ayrton brigava,
lutava, contestava, argumentava a favor do que era correto, do que era seguro,
do que era fundamental. A questão é que a voz, o discurso, a palavra incomodam
em demasia, retiram a frágil sustentação que conforta os interesses de uns e
outros.
O simbolismo dos
punhos erguidos para fora do carro e a bandeira do Brasil nas mãos durante a
volta da vitória no circuito, na verdade foi o primeiro impacto sobre o olhar
dos brasileiros e brasileiras em relação a esse campeão. Mas, ainda que muitos
possam não se dar conta a priori, era
nas entrevistas que Ayrton construía para o seu país e para o mundo uma
dimensão maior e mais contundente da nossa brasilidade.
Afinal de contas,
Ayrton desconstruiu a nossa “essência Macunaíma” 1
de ser. Segundo ele, “no que diz respeito
ao empenho, ao compromisso, ao esforço, à dedicação, não existe meio termo. Ou você
faz uma coisa bem feita ou não faz”. E essa é uma ruptura de paradigma
muito substancial, para um povo que infelizmente é reconhecido ao redor do
mundo pelo “jeitinho” 2.
Ayrton era,
portanto, um rebelde no sentido pleno da palavra. Teimoso, obstinado, difícil de
controlar, queria tudo “preto no branco”, isonomia nas regras, conquista a
prova da competência. Com ele não tinha essa de “manipulação” de resultados, “se você quer ser bem sucedido, precisa ter
dedicação total, buscar seu limite e dar o melhor de si”.
Seu legado foi,
portanto, muito franco, muito honesto. Nossa condição de ex-colônia, de país em
desenvolvimento, de uma prática subserviente crônica, foi, de repente, subtraída
pelas atitudes, comportamentos e discursos de um único homem. Ayrton jamais
abriria mão do seu protagonismo para ser um coadjuvante medíocre, inexpressivo,
cabisbaixo. Como ele mesmo dizia, “o
segundo nada mais é do que o primeiro dos perdedores”.
Ayrton não trairia seus
princípios apenas para fazer figuração na F1, para ser mais um entre estrelas
de primeira grandeza de países de primeiro mundo, para ganhar um GP aqui e
outro ali enquanto o companheiro de equipe se tornaria campeão. Ele tinha a
mais plena convicção de quem era, do que era capaz de realizar, dos objetivos
que queria alcançar e, sobretudo, dos desafios que iria encontrar (mas, que não
o incomodavam em continuar). Isso explica porque eu penso que ele foi o nosso
último campeão.
O Brasil é um país
que ainda se deixa prejudicar muito por uma inferioridade mascarada que ronda o
seu inconsciente coletivo. Nossos olhos parecem olhar além; mas, nossa mente se
permite curvar constantemente ao empoderamento alheio, como se os outros fossem
sempre mais e melhores do que nós. Estamos sempre na posição de aprendizes
inexperientes, como se não pudéssemos ao invés disso ensinar, contribuir de
maneira pujante e compartilhar o que temos de melhor. Aceitando sem maiores
alardes ofertas de baixo escalão, que nos fazem engolir goela abaixo o estigma
da nossa “pecha”.
Certamente, alguém
vai dizer que Ayrton chegou aonde chegou porque era rico, bem nascido, enfim...
Mas, tentativas de obstaculizar os caminhos dele não faltaram. De fato, a F1 é
um esporte de alto custo e poucos têm cacife para a empreitada. Mas, de
qualquer forma, o que estava em jogo não era isso. O ponto nevrálgico dessa
questão é o fato de um brasileiro ter chegado aonde chegou e ter tido a ousadia
de enfrentar o sistema, de ter assegurado a sua dignidade, a sua cidadania, a
sua identidade.
Esse é o sentido
dessa grande lição. Como dizia a estilista francesa Coco Chanel, “não importa o lugar de onde você vem. O que
importa é quem você é! E quem você é? Você sabe?”. Ayrton sabia; por isso, não
se rendeu. Foi até o fim, até que seu traçado firme e reto encontrasse uma
curva... a Curva Tamburello.
Por isso, sempre
que se lembrar de Ayrton Senna permita-se no lugar da idolatria deixar aflorar
a reflexão. Isso faz bem mais sentido!
1 Macunaíma.
Mário de Andrade. (1928). Disponível em http://bd.centro.iff.edu.br/bitstream/123456789/1031/1/Macuna%C3%ADma.pdf.