Crônica do fim de semana


Em direção a um mundo de carimbo



Por Alessandra Leles Rocha



Não é de hoje que esse processo de superficialização do entendimento me preocupa. Ler o mundo a partir de títulos e manchetes, ao invés de sorver as linhas e as entrelinhas das mensagens está sim, conduzindo a sociedade a uma mediocridade limitante que beira às raias da ignorância resistente ao óbvio.
O que seria do amarelo se todos gostassem do azul? A pergunta parece infantil; mas, traduz exatamente o ponto de reflexão que é preciso desenvolver. Quando estreitamos, ou limitamos, o nosso foco estamos inevitavelmente caminhando em direção a um mundo de carimbo. E o que faz um carimbo? Cópias de um modelo pré-concebido, pré-determinado. Passa-se a existir uma única identidade, que se reproduz indefinidamente.
Só que em um mundo de identidade única não há novidade. Há sempre o mesmo do mesmo. Nada se transforma. A sociedade se faz e refaz como uma fábrica automatizada. Lembra do clip Another brick in the wall, do Pink Floyd 1? Pois é.
Se a tendência parece ser essa, então eu me questiono como o mundo vai se reorganizar diante de uma existência genuinamente diversa? É só abrir os olhos e enxergar. Não cabe nas mãos o número de espécies da fauna e da flora que encantam pelas cores, formas, odores, funções... Sem contar que ninguém vive só de pão. Ou que há no mundo um único remédio para todos os males.  Ou que Mozart ou Beethoven fizeram grandes concertos de uma nota só.   Ou porque há a necessidade de roupas especiais para cada estação do ano. Ou mesmo, porque há estações climáticas diferentes? E olha que eu nem cheguei ao ponto mais evidente da diversidade que é o próprio ser humano.
Já se olhou no espelho? Uma observação cuidadosa, ainda que rápida, de cada detalhe externo do seu corpo exibe diferenças, mesmo que sutis. Por dentro, por mais que a medicina nos aponte um padrão, aqui e ali sempre surgem achados de variações anatômicas que nos distanciam de uma produção em série. E do ponto de vista emocional e comportamental, então, nem se fala. Por mais que tentemos repetir exatamente a nossa rotina diária, por exemplo, alguma coisa vai sair diferente. A alternância entre bom e mau humor é uma verdade clássica. O fato é que somos mais e mais diversos na nossa singularidade individual, do que podemos ou queremos admitir.
Sejam quais forem as suas convicções e crenças, a verdade é que a criação do mundo buscou fundamentar-se na diversidade, na sua maior amplidão, para que fosse possível a engenhosidade funcional da vida. As diferenças se complementam. As diferenças criam possibilidades. As diferenças desenvolvem habilidades e competências, que tornam possíveis a tecitura cotidiana.
Não é à toa que a civilização humana na sua sede de expansão e desenvolvimento criou mapas que lhes mostrassem quais possibilidades teriam para chegar a esse ou aquele lugar. Não é à toa que os estudos da mente trabalham, também, com a elaboração de mapas cognitivos, emocionais, comportamentais, de modo que as relações humanas sejam mais bem aproveitadas e desenvolvidas. Isso porque não há um único caminho, uma única fórmula para se alcançar o resultado desejado.
Portanto, quaisquer formas de negação à diversidade só fazem refletir um retrocesso estranho ao próprio fluxo natural da vida; afinal, somos diversos e fazemos parte da diversidade em todos os sentidos que ela ocupa.  E não há nada de terrível, de horrível, nisso.
Muito pelo contrário. Temos muito que agradecer a diversidade que une a ciência em favor da sobrevivência humana. Temos muito que agradecê-la por nos possibilitar comunicar por meio de línguas e linguagens variadas ao redor do planeta. Temos muito que agradecê-la, visto que por meio de suas necessidades ela impulsiona o desenvolvimento tecnológico, cria empregos, gera lucros e oportunidades. Enfim...
Quem almeja limitar-se a uma única forma, talvez, só tenha se esquecido de que essa uniformidade só acontece quando a gente morre. Só a morte nos iguala indubitavelmente; pois, ela é o fim de tudo o que existe. Portanto, seremos sempre diversos, sempre plurais em meio as nossas certezas e contradições, até que o último sopro nos alcance.



1 Pink Floyd - Another Brick in the Wall (HQ) - https://www.youtube.com/watch?v=YR5ApYxkU-U


Comentários

  1. Adorei a reflexão, Alessandra! Em tempos sombrios a uniformidade não pode ser o caminho e sim o diálogo... a multiplicidade...

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