O Brasil no “cantinho do pensamento”
O Brasil
no “cantinho do pensamento”
Por Alessandra
Leles Rocha
A criança comete uma travessura e
a mãe a coloca no "cantinho do pensamento". Bem, uma estratégia
disciplinar um tanto quanto questionável; pois, ao contrário de um espaço para
reflexão genuína, a mãe desconsidera que as crianças, principalmente, as
pequenas, não têm maturidade suficiente para um exercício de autorreflexão.
Caro (a) leitor (a), o Projeto de
Lei (PL) 2.162/2023, que altera o Código Penal
e a Lei de Execução Penal para reduzir as penas e facilitar a progressão de
regime de condenados por crimes contra o Estado Democrático de Direito,
especialmente os envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, é como
um “cantinho do pensamento” para uma identidade cidadã tão frágil e mal constituída
como é a brasileira.
Não, não há como negar que,
historicamente, o Brasil apresenta uma trajetória marcada pela impunidade e
pela utilização de brechas jurídicas, particularmente associadas as raízes
coloniais e por uma estrutura processual que favorece a morosidade e a evasão
de punições. E essas ferramentas dificultam a aplicação equânime da lei e
transformam o julgamento final em algo de difícil alcance. Haja vista que, em
2023, o Brasil ocupou a 70ª posição em um ranking global de 163 países,
figurando entre as nações com os mais altos níveis de impunidade no mundo.
De modo que essa dosimetria da
pena, modificando as regras de progressão de regime, focando em crimes contra o
Estado Democrático de Direito, é o mais absoluto escárnio promovido pelo
Congresso nacional. A fim de esclarecer melhor os fatos, os crimes contra o
Estado de Direito, tais como tentativa de golpe, ameaça aos poderes, ou
atentados à democracia, são punidos com penas severas, variando de reclusão por
muitos anos, sanções que incluem multas, e prisão perpétua em alguns países. Por
isso, podem ser julgados até pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) se
configurarem crimes contra a humanidade.
E o Supremo Tribunal Federal
(STF), ciente de tudo isso, tem cumprido o seu papel, condenando todos aqueles
que cometeram os crimes de tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do
Estado Democrático de Direito, associação criminosa armada e/ou dano
qualificado. Enquanto o Congresso nacional age na contramão contemporizando, condescendendo,
transigindo, como se um “cantinho do pensamento” fosse o suficiente para
responsabilizar ou punir indivíduos que compactuaram com uma trama de golpe, a
qual pretendia não só atentar contra o Estado Democrático de Direito, como
assassinar autoridades do Executivo e do Judiciário.
O que temos bem diante de nós
merece atenção e reflexão. O perigo dos precedentes para a estabilidade de um
país reside na má aplicação, na transformação de decisões pontuais em teses
abstratas e na falta de diálogo entre os poderes, gerando insegurança jurídica,
instabilidade nas relações sociais e questionamento da autonomia judicial. Algo
que é extremamente perigoso, tendo em vista de que se pretende com a mudança na
dosimetria penal, através desse PL, constituir um instrumento semelhante à
anistia, mas com foco na revisão do cálculo da pena ao contrário de perdoar o
crime, beneficiando o criminoso quanto à diminuição do seu tempo de prisão e os
prazos de progressão de regime.
Mas, não bastasse isso, o PL da
Dosimetria pode motivar uma onda de judicialização em outros casos além dos
relacionados aos atos de 8 de janeiro; pois, poderá abrir brecha para pedidos
de revisão criminal em massa. Podendo beneficiar crimes comuns, incluindo
condenados por tráfico e outros delitos graves, dependendo de como as etapas do
cálculo forem alterados.
Infelizmente, a identidade cidadã
brasileira ainda não amadureceu, é uma criança mimada e inconsequente;
sobretudo, quando se olha para o campo político-partidário nacional. Em pleno
século XXI, a cultura do “jeitinho”, onde normas coletivas são ignoradas em
benefício de interesses individuais ou familiares, ainda vigora sem pudores ou
constrangimentos. Como se o (a) cidadão (a) brasileiro preferisse o recurso da conciliação
ou do consentimento informal ao engajamento em canais institucionais de
mudança, o que reforça a ideia de uma postura menos madura politicamente.
O que eles sempre se esquecem,
por força da sua imaturidade cidadã, é de que as conjunturas possuem uma força
corretiva intrínseca e incontrolável. No Direito e na Política, precedentes
absurdos tendem a ser revogados quando entram em conflito com a funcionalidade
de uma sociedade. Se uma regra é inconveniente e impõe obstáculos ao progresso
ou à estabilidade, as forças sociais pressionam por sua reforma. Afinal de
contas, embora o absurdo possa triunfar no curto prazo, ele é insustentável.
