É preciso pensar além da intimidação
É preciso
pensar além da intimidação
Por
Alessandra Leles Rocha
Quem nunca ouviu falar sobre o
bullying? Pois é, essa prática de intimidação, de importunação moral e, algumas
vezes, física, que atinge pessoas em diferentes faixas etárias, grupos sociais,
espaços geográficos, tem contribuído para o adoecimento mental.
Então, debruçada em uma longa
reflexão a respeito, percebi um viés importante e, talvez, pouco debatido. As
manifestações do bullying ocorrem em razão das diferenças. Tudo pode ser
pretexto para o bullying. Raça. Gênero. Peso. Altura. Idade. Status social. ...
O que significa que o bullying orbita o universo das diferenças humanas.
Estamos diante, então, de um
problema de aceitação das singularidades e especificidades, porque o mundo tem
sido levado a pensar dentro de uma perspectiva de padrões homogeneizantes. O
que, não raramente, é estimulado pela sociedade de consumo.
Para ser aceito, pertencer, são
criados códigos subliminares, os quais, na verdade, visam reduzir ao máximo as
diferenças. Acontece que esse movimento ataca diretamente a identidade dos
indivíduos, impedindo-os de serem quem são e como são. Caso contrário, eles são
lançados às arenas, reais e virtuais, contemporâneas, sendo submetidos às
diversas práxis de intimidação.
Quando penso a respeito, me
lembro imediatamente da canção “Admirável Chip Novo” (2003), da cantora
Pitty; sobretudo, o trecho “Nada é orgânico, é tudo programado/ E eu achando
que tinha me libertado”. Sim, porque o bullying contraria a ideia
superestimada e defendida, pela sociedade contemporânea, sobre liberdade. Não,
não somos tão livres assim! O tempo todo existe alguém bradando um perfil
social a ser (per)seguido.
Portanto, o bullying é um regime
de coagir ou de obrigar pela intimidação, pela força ou pela violência. De modo
que os indivíduos submetidos a tais práxis colapsam, quando se sentem incapazes
de se enquadrar dentro de um determinado perfil preestabelecido. Algo que cria um
registro mental de incapacidade, de frustração, de incompetência, que não traz em
si nenhuma verdade. Porque ninguém é obrigado a ser desse jeito ou de outro!
Daqui e dali, ouço muita gente
falando sobre pluralidade, diversidade, inclusão, ... Acontece que da teoria
para a prática existe um abismo gigantesco. Infelizmente, fazendo um
retrospecto da historicidade humana, a verdade é que esses conceitos jamais
tiveram uma ampla aceitação. A tentativa de castrar, de modular os corpos, as
identidades, as ideias, os desejos, as linguagens, sempre existiu como uma
manifestação da homogeneização conservadora.
Quem não se lembra do filme “O
Sorriso de Monalisa” (2003)? Ao
ministrar aulas de História da Arte, na conceituada Wellesley College,
Massachusetts, EUA, a professora Katharine Watson (Julia Roberts) ensina
meninas da década de 1950 a questionarem os seus papéis sociais tradicionais e,
por isso, sofre intimidação da direção, do conselho de pais e mestres, e das
próprias alunas.
Veja, a homogeneização, no fundo,
produz uma objetificação, a qual desumaniza o ser humano. Como se quisesse
produzir uma humanidade seriada, onde tudo fosse igual. Assim, não haveria
discussão. Não haveria conflito. Não haveria rebeldia. Seria uma sociedade totalmente
blasé e pseudoconformada aos ditames daqueles que controlam o poder.
Segundo o filósofo e escritor
francês, Jean-Paul Sartre, “A violência, seja qual for a maneira como ela se
manifesta, é sempre uma derrota”. Daí a necessidade de dissecar as camadas
existentes no bullying, independentemente, se ele acontecer dentro do contexto
do mundo real ou virtual. Isso implica, necessariamente, na disposição em
admitir a existência de uma transversalidade nessa discussão, ou seja, é
fundamental identificar os gatilhos que desencadeiam a sua formação social, ou
seja, a ética, o consumismo, as mídias sociais, o cancelamento, o efeito
manada, ...
Assim, a transversalidade permite
contextualizar e organizar de forma associativa os assuntos; bem como, resgatar
a memória dos acontecimentos, interessando-se por suas origens, causas,
consequências e significações, ampliando a consciência do indivíduo e
possibilitando que ele se torne protagonista da sua história, da sua
identidade.
A luta contra o bullying depende
necessariamente desse processo que ultrapassa os limites do sofrimento de quem
é vítima da intimidação. É preciso combater a disseminação dos gatilhos
sociais. Lembre-se, o bullying não é um problema estritamente individual, ele é
um problema coletivo. Tanto que, no Brasil, ele é crime, tipificado através das
leis n.º 13.185/2015 1 e
n.º 14.811/2024 2.
1
Que instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática, ou seja, obriga
escolas, clubes e agremiações recreativas a garantir medidas de
conscientização, prevenção, diagnóstico e combate ao bullying, implementando
uma série de ações que visam erradicá-lo.
2 Que criminaliza o bullying e o cyberbullying; bem como, define uma Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente.