O ineditismo ...

O ineditismo ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não se engane, o ineditismo é sempre a ponta de um imenso iceberg. Uma parcela significativa do Brasil está perplexa pela ousadia da construção golpista que se estabeleceu nos últimos anos. Mas, em relação ao alcance de membros da alta cúpula militar na recente tentativa de Golpe de Estado, é preciso olhar além da superfície.

Seria mais um equívoco terrível da história nacional, sustentar a tese de que um movimento golpista seria uma questão pontual dentro das Forças Armadas. A partir do fato de que elementos do generalato, o mais alto cargo da hierarquia do Exército, estão presos e que o trabalho de persuasão para apoiar a eleição do ex-Presidente da República se deu dentro de centros de formação militar, em atividades festivas para as quais ele era convidado a participar e, algumas vezes, discursar, é fundamental apurar a dimensão corrosiva trazida pela ideologização política radical e extremista dentro das instituições militares, como um todo.

É importante ressaltar que tal conjuntura prosperou porque encontrou condições favoráveis. A redemocratização brasileira, na década de 1980, não trouxe consigo uma reformulação de crença, valores e princípios aos segmentos militares do país. A anistia brasileira se transformou em processo de silenciamento histórico e um grande impeditivo para uma reflexão dos acontecimentos. Assim, os processos de formação militar permaneceram fundamentados ideologicamente por velhos e obsoletos paradigmas globais, construindo uma realidade paralela e contrária ao desenvolvimento e ao progresso social do país.

Parece absurdo, mas não é! O ódio destilado pelos matizes mais radicais e extremistas da Direita, dentro do núcleo militar, reflete a disseminação contemporânea de questões totalmente fora de propósito. Eles parecem presos na sua trajetória histórica, ampla e profundamente manipulada pelos interesses internacionais, a certas ideias tais como a Guerra Fria, o combate ao Comunismo e quaisquer ideologias de caráter progressista. Estão entrincheirados numa guerra contra inimigos imaginários, os quais foram convencidos sobre uma eventual periculosidade, quase, letal.

Acontece que esse pensamento, transitando de dentro para fora e de fora para dentro dos quartéis, inevitavelmente, se torna nocivo à manutenção democrática. A verdade é que não estamos falando apenas de ideias; mas, de um conceito próprio de realidade, capaz de afetar as relações sociais em diferentes níveis. Acostumados a uma condição de obediência hierarquizada, a construção do pensamento militar passa por uma limitação da consciência crítica e reflexiva, dentro de um condicionamento de aceitação e não contestação.

Daí é fácil entender porque razão, gerações e gerações de militares, permanecem olhando e entendendo o mundo a partir de uma mesma perspectiva. A caserna não acompanhou a evolução da própria sociedade. De modo que ela enxerga os equívocos, os erros, os absurdos, na figura do outro, aquele que não pertence à sua realidade. Uma construção histórica que permitiu os colocar em uma posição de superioridade absoluta e incontestável, a qual lhes garantiu também um conjunto de regalias, privilégios e poderes que não estão dispostos a negociar jamais.

Por isso, ainda que não haja uma unanimidade ideológica golpista dentro das Forças Armadas, não se pode relativizar e dizer que ela é pontual, dada a sua organização hierárquica e a permissividade com que certas fraturas protocolares se estabeleceram dentro das unidades de comando. Começando por essa aglutinação político-militar, a qual afronta diretamente a atemporalidade do Estado, ou seja, governos mudam e o Estado permanece, cabendo às forças militares servirem aos interesses do Estado e não, de pessoas.   

É preciso compreender que a responsabilização dos envolvidos na tentativa recente de Golpe de Estado, inclusive militares, é algo inegociável na perspectiva da manutenção democrática nacional. Mas, não é tudo. Se não houver uma mensuração do grau de disseminação golpista nas Forças Armadas, se não houver uma mudança paradigmática e curricular dos militares, se não houver uma ruptura definitiva com essa aglutinação político-militar, a presença de elementos golpistas persistirá nessas instituições e o risco ao qual a Democracia estará submetida, será de inteira responsabilidade da inação e da negligência das autoridades brasileiras.