Anistiar...

 

Anistiar...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Precisei de algum tempo para organizar os pensamentos e formular uma reflexão que pudesse, de algum modo, agregar novos vieses. Anistiar 1 é uma palavra já conhecida na história brasileira. Aos que têm dúvidas a respeito, ela significa perdoar um ato ofensivo, desculpar, esquecer.

Bom, pelo menos é o que diz o dicionário. Na prática, o que se tem é a relativização da permissividade, segundo interesses, muitas vezes, nada republicanos.  A anistia chancela a possibilidade da reincidência, ela abre um precedente perigoso; sobretudo, no sentido de tentar desvirtuar os parâmetros éticos e morais da sociedade.

E quando se expande essa discussão para a seara político-partidária ou para as instituições, por exemplo, a situação se agrava ainda mais. Haja vista que não precisa se tratar do mesmo assunto, para que os reflexos e desdobramentos de uma anistia reverberem sobre outros.

Aliás, esse padrão comportamental é parte integrante da história nacional. Nesses pouco mais de 500 anos, a anistia esteve presente em diversas circunstâncias, o que favoreceu para que ela fosse trivializada, banalizada, dentro do cotidiano nacional. Um lamentável equívoco que já provou o conjunto dos seus prejuízos, em diferentes formas e conteúdos.

Começando pela fragilização da construção da verdadeira identidade nacional brasileira. Aquela despida das amarras da historicidade colonial e sustentada por uma consciência cidadã plena e pelo exercício democrático responsável. Ora, a anistia torna os cidadãos lacaios do seu fracasso civilizatório, apontando para uma incapacidade deles em arcar com as consequências de seus próprios atos.

Assim, o princípio constitucional da igualdade e da equidade se perde, na medida em que a anistia é condescendente com o desvirtuamento e a afronta do indivíduo em relação ao ordenamento jurídico do seu país.  Como se as leis, as regras, as normas, existissem; mas, pudessem ser descumpridas sem risco de responsabilização.

Aproveitando o momento em que o Brasil tem estado sob uma densa camada de fumaça e fuligem, provenientes de um movimento de queimadas criminosas, a qual se estende por todo o seu território, temos a materialização do que significa anistia. Porque em 2019, quando ocorreu o chamado “Dia do Fogo”, uma série de incêndios florestais no estado do Pará, a impunidade anistiou esse tipo de práxis.

Cientes das mudanças extremas do clima e do modo como tem afetado a dinâmica das estações, no país, a radicalização da seca em diversos estados já estava computada. No entanto, o que se tem é uma queimada por ação antrópica em um cenário totalmente desprovido de umidade, que favorece a propagação rápida e intensa do fogo. E assim, ardem em chamas os biomas, as cidades, os olhos, os pulmões, ...

Não é difícil entender! Cada anistia aplicada, seja em que situação for, se traduz em permissividade ilimitada, descompromissada com qualquer valor ou princípio ético e moral. Basta querer, para fazer. Movido por um pseudodireito de estar acima do Bem e do Mal.

Por essas e por outras é que nenhuma anistia pacifica. A indulgência não apaga o fato em si, nem o faz menor ou menos pior. Então, ele permanece ali, dormente, até que encontre condições novamente ideais para ressurgir. Anistiar é um ato de deseducação, um obstáculo no processo de aprimoramento humano, seja no campo individual ou coletivo. É, portanto, um sinal claro de anuência com o recrudescimento da incivilidade.