1º de Maio

 

1º de Maio

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Enquanto os simpatizantes da direita e de seus matizes, principalmente, os da ultradireita, se enfurecem pelo feriado de 1º de Maio, considerando-o uma expressão acintosa da vagabundagem nacional, se esquecem de que feriados não são frutos da vontade popular; mas, estabelecidos a partir de projetos propostos pelos legislativos nacionais.

Dito isso, só posso considerar que o hábito de ser poder, de ser controle, de ser influência, de representar as camadas superiores da pirâmide social, infelizmente, favorece a esse tipo de distorção bizarra. Acontece que essa sua ira incontida não lhes permite admitir o óbvio. Nem sobre esse aspecto, nem sobre qualquer outro. Assim, proponho uma reflexão à margem dos sentimentos acalorados sobre a questão.

Só para início de conversa, esse feriado diz pouco a uma gigantesca parcela da população. Para quem não sabe, a taxa de desemprego encerrou o primeiro trimestre deste em ano em 8,8%, ou seja, 9 milhões e 400 mil pessoas. Gente que, portanto, não tem quaisquer razões para celebrar esse feriado. Mas, não para por aí! A Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e divulgada recentemente, também, aponta que houve aumento na taxa de informalidade, que alcançou 39% da população ocupada, ou seja, 38,1 milhões de trabalhadores.

Mais do que nunca, então, o 1º de Maio faz todo sentido em existir! Refletir, discutir, reivindicar por melhores condições de trabalho, por remunerações e jornadas mais justas e dignas, foi o que levou em 1886, milhares de trabalhadores em Chicago, nos EUA, a ir para as ruas em um 1º de Maio. Acontece que 137 anos depois, a realidade trabalhista, no Brasil e no mundo, vem espelhando mais do mesmo, ou seja, sendo cada vez mais deteriorada e dilapidada por legislações e ideologias que desumanizam e precarizam a força de trabalho.

Daí a necessidade da manifestação pública.  De um dia no calendário para dar visibilidade a todas as formas de servidão, de sujeição, de subserviência, de humilhação, que se reafirmam diariamente na contemporaneidade. Veja, por exemplo, que só entre janeiro e 20 de março deste ano, o Ministério do Trabalho e Emprego, no Brasil, resgatou 918 vítimas de trabalho análogo à escravidão. A maioria dos casos ligados às atividades agrícolas, como um resquício cruel da herança colonial. O que significa que o trabalhador vem sendo exposto a diferentes formas de escravidão contemporânea, sem que, na maioria das vezes, consiga perceber e se libertar autonomamente.

É fato que a construção histórica desse cenário de explorações e desigualdades remonta ao início da civilização. No entanto, cabe nos perguntar a razão pela qual permaneceu. Lamentavelmente, a escravização teve seu processo atrelado à objetificação humana. Durante as grandes conquistas territoriais, marcadas por guerras épicas, os perdedores eram transformados em escravos. De modo que essa práxis demonstrou a capacidade de contribuir para a promoção do enriquecimento de diversas nações. Então, com o passar do tempo, ela foi se ajustando para caber as necessidades e aos interesses de cada época.

O que significa que no atual recorte temporal, ela chega travestida pela precarização resultante da perda de direitos trabalhistas que comprometem diretamente a dignidade humana de legiões de trabalhadores. No entanto, isso não é tudo! Lado a lado com a precarização está a expansão avassaladora das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) que já operam a substituição do trabalho humano pela máquina.  Aliás, sob uma forma e velocidade bem mais terrível do que fez a Revolução Industrial, na Inglaterra, na segunda metade do século XVIII.

Basta pensar que o planeta já possui 8 bilhões de seres humanos e dentre eles, apenas 2.640 dispõem de uma fortuna de pelo menos 10 dígitos, ou seja, não precisam se preocupar com a escassez das oportunidades de trabalho para garantirem a sua sobrevivência. É o restante que deveria se engajar na reflexão do 1º de Maio, na medida em que essas pessoas é que dão corpo à retroalimentação capital do sistema econômico. Todos dependem de todos para a acumulação de recursos que lhes permita sobreviver, consumir, empreender, enfim.

E o panorama atual não parece nada aprazível! A impressão que tenho em relação ao movimento de precarização trabalhista é de que se trata de uma tentativa velada e desesperada de retardar o avanço dos impactos da tecnização contemporânea, até que se consiga encontrar soluções que sejam efetivamente mitigadoras ao que acontece. No entanto, os números já mostram que a ideia não deu certo, como indicam os números do desemprego que avança e compromete o próprio fluxo da informalidade.   

Lentamente o ciclo econômico da prosperidade e da pujança vai decaindo ao redor do mundo. O que faz entender porque o 1º de Maio é bem mais do que um feriado, um dia de paralização da força motriz nacional. Ano a ano, ela se torna a oportunidade clara para se debater os rumos socioeconômicos da atual civilização, a fim de antever os riscos e os desdobramentos que eventuais colapsos significam para a humanidade, tais como a insegurança alimentar, o empobrecimento populacional, o enfrentamento das possíveis epidemias, a desescolarização, a radicalização e o extremismo sociocultural, ...

Assim, cada 1º de Maio é, para mim, o exercício máximo da cidadania, a expressão plena de que “A única dignidade realmente autêntica é a que não diminui ante a indiferença dos outros” (Dag Hammarkskjöld). Não importa se há apenas uma voz, uma dezena, uma centena, um milhar, ou um milhão, pelas ruas. Como dizia Rui Barbosa, “Quem não luta pelos seus direitos não é digno deles”.  E as questões trabalhistas não são questões individuais, são questões coletivas.

O mundo é o que é pelo resultado dos trabalhos diversos, plurais. Trabalhos imprescindíveis e vitais que jamais podem ser desqualificados, estereotipados, marginalizados, por nenhuma razão. Penso, então, que a melhor reflexão para esse 1º de Maio seja a seguinte, “No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade” (Immanuel Kant). 

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