Seria cômico se não fosse trágico

 

Seria cômico se não fosse trágico

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Bem, seria cômica se não fosse trágica a informação, trazida pela recente pesquisa realizada pelo IPEC, de que “44% dos brasileiros concordam que o Brasil corre o risco de virar um país comunista” 1. É realmente chocante perceber como houve uma deterioração cognitiva e intelectual, dentro de uma parcela significativa da população, e como isso acena com riscos ameaçadores para o país em si.

Porque a questão em jogo não é, e nem nunca foi, o comunismo no Brasil. Também, não é o nível de manipulação e de controle ideológico que vem se estabelecendo no país, com o forte empenho da direita e de seus matizes, principalmente, a ultradireita, a partir da disseminação de suas pautas de costumes. O que está em jogo é a fragilização do conhecimento.

Não é de hoje que estudos, mundo afora, debatem a superficialização do saber no contexto contemporâneo, intensificada a partir do avanço das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs). Ora, o volume de informações circulantes, através do mundo virtual, é extremamente superior ao do mundo real, em forma, conteúdo e velocidade, o que levou os seres humanos a uma rotina extenuante e inglória de tentar se manter informado sobre tudo o que acontece no micro e no macrocosmo que ele faz parte.

Acontece que não é preciso ser um gênio para descobrir que essa é uma tarefa impossível. Foi, então, que lentamente as pessoas passaram a constituir uma geração de leitores de manchete, ou seja, que não se debruçam sobre a absorção do conteúdo e se mantêm na dinâmica do que é trazido nas timelines. O que significa a construção de uma crença de que títulos são o bastante para nos preencher de conhecimento sobre um referido assunto.

Aliás, isso abre um viés importante para não cair na ilusão de que uma educação tecnologizada, como defende muita gente por aí, seria mesmo o espaço ideal para colocar essa discussão na roda. Só que não. Apesar de se viver em um país de desigualdades socioeconômicas que abrem lacunas profundas, especialmente, na Educação, nos locais onde as TICs já são uma realidade, a situação não é diferente.

Pois é, sem se dar conta, o que ocorre é que milhões de seres humanos caíram nas armadilhas do mundo virtual, que não está (e, nem nunca esteve) preocupado com questões éticas ou morais, apenas com a lucratividade que essa ciranda frenética de informações disseminadas e reproduzidas entre seus usuários pode repercutir. Há uma genuína impossibilidade de compatibilizar o tempo no mundo real, com suas 24 horas, com o tempo virtual infinito, de modo que a construção do conhecimento humano se esgarçou. Perdeu a corrida; mas, também, a qualidade, a excelência, o valor, a importância, a análise,...

Uma das promessas feitas pela Revolução Industrial, lá na segunda metade do século XVIII, ruiu. A mecanização e a maquinização não ofereceram mais tempo ao ser humano.  Vive-se sob uma ordem social convulsionada, na qual o tempo se tornou o sumo objeto dos desejos. Afinal, é cada vez mais visível que falte tempo para ser. Tempo para existir. Tempo para conviver. Tempo para aprender. Tempo para refletir. Tempo para construir o próprio conhecimento.

Tornando inevitável, então, que sob o comando de um efeito manada o ser humano se abastecesse do seu conhecimento pessoal em nome de um fluxo raso de informações disseminadas sem qualquer critério. Em linhas gerais foi como se, de repente, se trocasse a Enciclopédia Barsa ou Delta-Larousse, que contribuíram diretamente na formação intelectual de várias gerações brasileiras, para se lançar de olhos fechados a qualquer grupo de mensagens responsável pela reprodução em massa de conteúdos informais.

Entende, agora, a razão de tantas Fake News cruzando telas mundo afora, com a força das redes sociais e aplicativos de mensagens? O ser humano está não só abdicando da sua capacidade cognitiva, como não exercendo quaisquer resistências às manipulações e controles advindos das TICs. Ele tem a falsa impressão de estar desfrutando do seu poder de escolha, da sua capacidade decisória, da sua liberdade digital ilimitada, porque não consegue mais enxergar que está, na verdade, satisfazendo aos interesses de pessoas muito espertas que sabem como aprisionar o seu tempo tão valioso e raro, roubando sua atenção naquilo que lhe é mais sensível.

O que temos bem diante do nariz, portanto, não são 44% de brasileiros preocupados com o comunismo. O que temos são 44% de brasileiros alienados pela fúria brutal do que se conhece por Pós-Verdade, que se traduz por todas as práxis; sobretudo, as tecnológicas, capazes de criar e modelar a opinião pública a tal ponto de tornarem os apelos às emoções e às crenças individuais um instrumento de influência e persuasão muito maior do que os fatos em si.

Quando Umberto Eco disse ao jornal italiano La Stampa que “As redes sociais dão o direito de falar a uma legião de idiotas que antes só falavam em um bar depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a humanidade. Então, eram rapidamente silenciados, mas, agora, têm o mesmo direito de falar que um prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis”, penso que ele estava apenas meio certo.

Afinal de contas, o papel das TICs, no frigir dos ovos, foi dar impulso para a divulgação e a disseminação em massa de informações vazias e equivocadas. A verdade nua e crua, o que pesa mesmo nesse movimento, é o efeito manada fomentado pelas forças de poder, que pisoteou sobre o conhecimento e o reduziu a quase nada na contemporaneidade.

Assim, basta que um indivíduo legitime as tolices, as ideias absurdas de uns e outros, para que todos os demais se curvem a repetir, como mantra, as palavras que emergem de suas expressões de linguagem. Sem parar. Sem pensar. Sem refletir. Tornando o conhecimento um reflexo vulgar e deprimente da verborragia. E assim, o Brasil perde passivamente seus cérebros para outros países2 enquanto acolhe com euforia a torrente de gente que se autoproclama “influenciador digital”.      

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