Não, não é só falta de empatia!

 

Não, não é só falta de empatia!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A manchete traz que “Aluna da USP que desviou dinheiro de formandos quer destrancar curso de medicina e voltar para a faculdade, diz advogado” 1. Tais palavras expõem a necessidade de uma reflexão crítica não só a respeito da sociedade contemporânea; mas, de uma visível crise ética que tem envolvido a formação médica no Brasil.

É fundamental romper com um certo tipo de endeusamento que sempre envolveu a relação entre médicos e pacientes. Afinal, trabalhar sobre o tênue limite entre a vida e a morte é algo realmente difícil, complexo, e que não faz parte da realidade de aptidões e competências de muita gente por aí.

De modo que se criou uma distinção especial para os médicos, a qual, ultrapassando as fronteiras do conhecimento, acabou luzindo uma pseudossuperioridade social capaz de silenciar, e até, intimidar, quem não estivesse no mesmo patamar. Portanto, tornavam-se detentores de uma verdade absoluta, transformando suas opiniões e análises técnicas ou cotidianas em algo tão poderoso quanto a força das próprias leis. O que em linhas gerais significava conferir-lhes uma importância hierárquica maior no serviço de saúde; bem como, na própria sociedade.

Acontece que essa construção identitária tem seu início ainda no tempo colonial brasileiro, quando a desigualdade socioeconômica, que fundamentou as relações humanas no país, definiu como padrão comportamental a ser seguido, o poder capital, ou seja, a posse da riqueza como único passaporte capaz de dar vez e voz para poucos em detrimento do silêncio de uma maioria.

Por consequência, o acesso ao estudo, ao letramento, transformava-se em direito restrito a uma elite abastada. Como não havia escolas e universidades no Brasil, a classe dominante encaminhava seus filhos, homens, para a Europa, a fim de se tornarem médicos, bacharéis, engenheiros, diplomatas. E, tão logo, concluídos os estudos superiores, nos grandes centros europeus, retornavam ao Brasil as pequenas legiões de “Doutores”.

E sob esse enredo, embora passados pouco mais de 500 anos, o Brasil contemporâneo resiste. Mesmo se sabendo que, na atualidade, Doutores são aqueles agraciados com a aprovação pública de uma tese, diante de uma banca universitária de especialistas em um determinado assunto. Assim, permanecem pelos corredores, das mais simples às mais complexas unidades de saúde, o chamamento “Doutor”. O que, vamos e convenhamos, demonstra, também, o quinhão de responsabilidade das instituições de ensino na área médica quanto à reafirmação desse ideário.

Infelizmente, elas trabalham sim, em impregnar no pensamento dos jovens ingressantes na carreira essa ideia elitista e poderosa da monetização profissional. Colocando-os em verdadeiros pedestais, apontando-lhes para um futuro de regalias e de privilégios materiais e imateriais, os quais, na verdade, são diametralmente opostos à majoritária realidade brasileira. O que se torna algo extremamente danoso e prejudicial, quando encontra dentre esses indivíduos, aqueles cujo perfil psico-comportamental já padece naturalmente de algum tipo de deturpação ao desvio ético e moral.

É por essas e por outras, que eles (as) se esquecem de olhar, de ouvir, de tocar, de perceber a presença dos desafortunados que cruzam os seus caminhos. Estão cheios de si, embebidos (as) pela vaidade, pelas promessas de sucesso e de ascensão profissional meteórica, que lhes renderá um lugar cativo e inatingível no mundo dos importantes. Por isso, tornam-se apressados (as) nos seus atendimentos, insensíveis, negligentes; sobretudo, quando o fazem na rede pública de saúde. Apesar de que, vez por outra, acabem repetindo as mesmas práxis na rede privada.

Entretanto, se esquecem de que são por esses caminhos tortos, esquisitos, que eles (as) acabam esfacelando, deteriorando, a sua blindagem de “Doutor”. Diante de tanta arrogância, prepotência, soberba, ou como queiram chamar, essas pessoas começam a meter os pés pelas mãos, a errar grosseiramente, a cometer falhas seríssimas, a expor seus pacientes ao limite entre a vida e a morte, em muitos casos. Tudo muito grave; mas, que acaba encoberto por um pacto de silêncio. A sociedade não discute, não reflete, não se posiciona a respeito.

Mas deveria. Porque não são fatos isolados. “Anestesista preso por estupros diz que esperava o ‘melhor momento’” 2; “Anestesista preso por estupro durante cesárea aparece excitado em foto após outro parto, diz advogado” 3; “Pacientes e parentes de vítimas acusam médico do RS de cometer erros grosseiros em cirurgias” 4; “Mãe diz que foi vítima de violência obstétrica e que bebê ficou com paralisia cerebral no hospital onde mulher teve a mão amputada” 5; Médicas são exoneradas após vídeo zombando de gritos de criança em hospital no AM” 6; “Presidente do CFM critica uso de máscaras em documento para a Anvisa” 7; “Covid: Médico pode ser processado se receitar tratamento ineficaz, alertam especialistas” 8; ...

Portanto, se a tal estudante de medicina vai retornar ou não para a universidade não é a questão reflexiva desse texto. Esse é um assunto de foro interno a ser discutido entre a instituição, a sociedade acadêmica e a justiça.  O ponto crucial dessa análise, então, é buscar o entendimento de que nem todo comportamento indigno, irresponsável, negligente, desumano, cruel, é resultado exclusivo de falta de empatia, ou senso humanitário.

Na maioria das vezes, ele acontece porque admite estar legitimado pela prática e pelo discurso de gente que não se constrange em reafirmar a manutenção de crenças, valores e princípios totalmente materialistas, a fim de justificar a existência de indivíduos maiores, melhores e superiores do que seus semelhantes.

Por isso, “É necessário cuidar da ética para não anestesiarmos a nossa consciência e começarmos a achar que tudo é normal”. Afinal de contas, a “Ética é o conjunto de valores e princípios que nós usamos para decidir as três grandes questões da vida: ‘Quero? ’, ‘Devo? ’, ‘Posso? ’. Tem coisa que eu quero, mas não devo, tem coisa que eu devo, mas não posso e tem coisa que eu posso, mas não quero” (Mario Sergio Cortella). 



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