VIOLÊNCIAS. Eis os retratos dos nossos pecados inconfessáveis.

 

VIOLÊNCIAS. Eis os retratos dos nossos pecados inconfessáveis.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É lamentável ver parte da população se colocar na posição de torcida organizada no trato de assuntos extremamente complexos e importantes. Violência vai muito além de certo e errado, bom e mau. De modo que a Justiça só se materializa efetivamente nesses casos, quando munida da solidez de profundas análises reflexivas e de princípios bem constituídos.

As violências se repetem, se sucedem; mas, estão longe de ser obra do acaso. A grande questão é que a contemporaneidade parece ter trazido tudo para a facilidade dos recortes ao invés dos fatos propriamente ditos. O último ato da violência é sempre o desfecho de um processo meticulosamente engendrado para culminar dessa maneira. Portanto, a violência não é repentina.

Então, quando as pessoas se arvoram do direito de execrar o criminoso, elas não têm o direito integral de fazê-lo, apenas, em parte. Ora, muito da violência que se exibe por aí tem sim uma parcela importante de contribuição da própria sociedade. Vejamos que a violência é um desalinho da segurança e a segurança é uma questão de Estado, o que significa que os cidadãos ainda que de maneira indireta exercem a composição do Estado através do voto.

E como temos percebido com facilidade que nos tempos contemporâneos os indivíduos exigem cada vez mais seus direitos e cumprem cada vez menos as suas obrigações, o exercício fiscalizador inerente ao votar acaba passando longe do seu cumprimento. Nem mesmo, naquilo que diz respeito a situações tão fundamentais à vida cotidiana, como é o caso da segurança.

As pessoas lamuriam sobre a insegurança no dia a dia; mas, desconversam a respeito da sua pouca ação no sentido de cobrar de seus representantes eleitos políticas que sejam eficientes e suficientes para devolver a paz, a ordem, o equilíbrio social. São nesses momentos, que fica mais fácil bravejar sobre as espumas dos acontecimentos ao invés de olhar profundamente sobre os caminhos que fizeram as coisas chegarem ao ponto que chegaram.

Pois é, a grande maioria dos candidatos fala pelos cotovelos, lançam ideias desconectas ao vento, e em pleno século XXI, no Brasil, há quem considere tudo isso normal. Só que não. Ser candidato é fácil, quero ver administrar satisfatoriamente um país com tantos desafios seculares e atuais a serem debelados! Afinal, os problemas não estão em caixinhas separadas e etiquetadas. Todos dialogam com todos.

Segurança, por exemplo, dialoga com economia, com justiça, com educação, com trabalho, com saúde. E o não fazer da classe política, eleita a partir dos votos, tantas vezes depositados displicentemente nas urnas, é que derrama o caldo. Como na história infantil de João e Maria 1, que foram orientados a marcar o caminho de volta para casa a fim de não se perderem na floresta, nossos votos deveriam também nos remeter a um flashback de como os problemas que nos afligem se constituíram.  

Não vejo ninguém se interessar pelo começo da história, ou seja, quando, como e onde as sementes da violência foram lançadas no país. Quem as regou com afinco e dedicação? Quem deu um incentivo a mais para que elas prosperassem? Quem trabalhou às avessas para as violências permanecerem exatamente no seu devido lugar? ... Fazendo, mesmo, emergir a ideia de que as violências acontecem nos “de repentes” da vida, quando sabemos muito bem que isso não é verdade.

E aí, que para encurtar a narrativa, esconder as (ir) responsabilidades, é que muita gente destila o veneno estritamente sobre os ditos “criminosos”, ovacionando irrefletidamente sobre as ações das equipes de segurança pública. Não se preocupam com as baixas humanas alheias ao confronto, com a possibilidade das balas perdidas, com a falta de critérios para a realização das incursões, enfim...  Mas, o que é pior, ninguém se questiona de que, entra ano e sai ano, as violências não cessam.

Mata-se muito. Mata-se a esmo. Mata-se como solução prática e rápida. No entanto, as violências não saem de cena. O que significa que essa legitimação da insegurança, como ferramenta de garantia da segurança conforme os padrões vigentes no país, é uma grande falácia. Tanto da parte de quem está no comando e execução das ações, quanto daqueles que as defendem e as aplaudem.

Portanto, vidas não estão sendo preservadas. Nem dos “bandidos”. Nem dos inocentes. Nem de policiais e agentes de segurança. Nem da população a quilômetros de distância, dado o potencial de alcance das armas utilizadas nas incursões. Enfim ... Nessa guerra urbana contemporânea nenhuma vida fica a salvo.

É. A verdade dói! A verdade escancara o descompromisso e a presença de um rastro de anticidadania que impede o desenvolvimento e o progresso do país. Que cria novos cenários para promessas eleitoreiras, de pleito em pleito, como no velho modelo da “indústria da seca”. E assim, vamos assistindo ao surgimento da “indústria do desemprego”, da “indústria da fome”, “da indústria da violência”, e por aí vai.  

Não é o ato de votar que te torna cidadão. A cidadania compreende o exercício dos direitos e obrigações civis, políticas e sociais, com o único propósito de consolidar uma sociedade mais justa e equilibrada. Lembre-se do que escreveu Baltasar Gracián, prosador espanhol do século XVII, “Alguns raciocinam sempre ao contrário, dando muita atenção ao que é pouco importante e pouca atenção ao que é muito importante” (Oráculo Manual e Arte de Prudência); afinal de contas, cidadania é coisa séria!



1 João e Maria (1812) – Conto de fadas – Irmãos Grimm.