O Brasil entre a graça e a desgraça

 

O Brasil entre a graça e a desgraça

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Depois de alguns dias sendo o assunto mais comentado nas rodas populares, o benefício da graça parece longe de ser digerido no país, dadas as conjunturas em que ele foi concedido.

De uma hora para outra, o que era para ter caráter de extrema excepcionalidade e importância foi sumariamente vulgarizado. O que era para ser um recurso jurídico se transformou em ato politiqueiro de natureza reprovável.

Dessa vez, a graça não teve nenhuma graça! Graça assim, cheia de pessoalidade, de imoralidade, de desvio de finalidade, não faz ninguém rir. Especialmente, quando se olha para mais de 90% da população que vive a sombra de tantas desgraças.

Pois é, para esses cidadãos não há graça. Parece que a clemência de Deus e dos homens lhes abandonou, tornando seu cotidiano árido, áspero, sofrido, um verdadeiro caminho de penitência.

Talvez, por isso, o benefício da graça soou tão mal. Que ousadia livrar um único condenado, cujo processo de julgamento do seu delito não restou dúvidas a respeito do merecimento da pena, enquanto milhares de brasileiros e brasileiras são culpabilizados por situações que fogem por completo da sua participação, da sua decisão, da sua escolha.

Sim, porque no Brasil a pobreza é crime, a miséria é crime, o desemprego é crime, o analfabetismo é crime, a cor da pele é crime, ... todo o rastro de desigualdades sociais são pretextos para penalização do cidadão comum, sem que, para tanto, ele seja julgado e condenado nos parâmetros da lei.

Tudo acontece de maneira velada, subliminar, como se a sua existência de pura adversidade valesse, por si só, como prova irrefutável e indigna de qualquer revisão, ou reconsideração, ou misericórdia. Para esses não há graça.

Não é à toa que Rui Barbosa tenha feito a seguinte consideração: “A injustiça, senhores, desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em flor os espíritos dos moços, semeia no coração das gerações que vêm nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade, promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas” 1. E não há nada mais nocivo à esperança, à fé, à confiança, do que a injustiça.

Engana-se quem pensa que este episódio, ainda fumegante, é único na história brasileira. Pode ser enquanto traços e contornos; mas, a verdade é que, em doses homeopáticas, injustiças desse quilate, com o mesmo flagrante repulsivo, acontecem a torto e a direito, no país.

O que significa que há tempos “O povo sabe que não tem justiça; o povo tem certeza de que não pode contar com os tribunais; o povo vê que todas as leis lhe falham como abrigo no momento em que delas precise, porque os governos seduzem os magistrados, os governos os corrompem, e, quando, não podem dominar e seduzir, os desrespeitam, zombam das suas sentenças, e as mandam declarar inaplicáveis, constituindo-se desta arte no juiz supremo, no tribunal da última instância, na corte de revisão das decisões da justiça brasileira”  2.

A graça é, portanto, só mais uma regalia, um privilégio entre tantos destinados a uma ínfima parcela da sociedade. É só mais um modo sutil e cruel de apontar a distinção que se faz entre uns e outros, afrontando de maneira inquestionável o princípio constitucional da igualdade cidadã.

Como se o benefício da graça traçasse a linha divisória que separa os indivíduos, no Brasil, quando da ruptura dos parâmetros que deveriam orientar a sua aplicação. Infelizmente, a graça foi desvirtuada. A graça foi corrompida.

Isso significa que, mais uma vez, “A estratificação social separa e opõe, assim, os brasileiros ricos e remediados dos pobres, e todos eles dos miseráveis, mais do que corresponde habitualmente a esses antagonismos. Nesse plano, as relações de classes chegam a ser tão infranqueáveis que obliteram toda comunicação propriamente humana entre a massa do povo e a minoria privilegiada, que a vê e a ignora, a trata e a maltrata, a explora e a deplora, como se esta fosse uma conduta natural” (Darcy Ribeiro) 3.

Em suma, no Brasil há os que vivem sob a eterna graça; mas, há uma imensa maioria fadada a sobreviver sob a eterna desgraça. Não, porque o manto da bondade, da misericórdia, da justiça, seja curto para cobrir a todos sem distinção. Mas, porque se estabeleceu que dessa forma é mais interessante, é mais apropriado, é mais confortável e, até mesmo, ironicamente engraçado.

Não nos esqueçamos de que “Cada qual se veste com a sua dignidade por fora, diante dos outros; mas, sabe muito bem tudo de inconfessável que se passa no seu íntimo” (Luigi Pirandello) 4. Assim, não há graça que seja suficientemente capaz de encobrir todos os deslizes, todos os “mal feitos”, todos os pecados, todos os crimes. Fato é que, mais dia menos dia, se descobre que “O Rei está nu! ” 5.  



1 BARBOSA, R. Excertos de discurso parlamentar de 17 de dezembro de 1914. In: Discursos Parlamentares. Obras completas. v.XLI, 1914, tomo III, p.86-87. https://institutopoimenica.com/2012/05/18/a-runa-da-justia-rui-barbosa/

2 BARBOSA, R. Obras Completas. p. 81. Publicado por Ministério da Educação e Saúde, 1942.

3 RIBEIRO, D. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 472p.

4 PIRANDELLO, L. O falecido Mattia Pascal. Nova Alexandria, 2007. 215p.

5 Fábula de Hans Christian Andersen. - http://revistavitrineibiuna.com.br/?p=6701