Os filhos e as filhas da diáspora contemporânea
Os
filhos e as filhas da diáspora contemporânea
Por
Alessandra Leles Rocha
A guerra não é só o horror
imediato que se expõe diante dos olhos da humanidade. Abaixo da linha de visão
existem camadas de uma barbárie inominável a serem decompostas ao longo do
tempo. Questões que, muitas vezes, nem passam pela cabeça da maioria das
pessoas, em um primeiro momento; mas, posteriormente, irão se revelar na
expressão do cotidiano das mazelas humanas.
Ao ler a notícia de que “Uma criança vira refugiada a cada segundo
na Ucrânia” 1, de acordo com informações
do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), fiquei pensando em como se
dará o futuro dessas gerações e de quantas outras milhões, existem espalhadas
pelo planeta, em razão de conflitos armados tão absurdos quanto esse.
Ora, além da sobrevivência ameaçada,
que torna necessário o travamento de uma luta, mesmo que inconsciente, pela
vida, o que se sucede depois em seus caminhos, também, é um processo de
ressignificações identitárias muito profundo e complexo.
A verdade é que estamos diante de
milhões de crianças lançadas abruptamente aos braços do imprevisível, por uma
ruptura radical com suas bases de desenvolvimento. O que significa perder,
total ou parcialmente, as suas referências humanas – pai, mãe, avós, tios (as),
primos (as), amigos (as), as suas referências espaciais – casa, escola, cidade;
bem como, seus hábitos e costumes sociais.
Acontece que o tempo de reaprendizado,
de readaptação, de reconstrução, é individual, na medida em que cada uma delas
sente, percebe, compreende, de maneira própria esse processo. Para algumas é
mais simples. Para outras é mais difícil.
Sem contar a existência de todos
os componentes externos envolvidos, inclusive, do ponto de vista subjetivo
presentes nas sociedades que irão acolhê-las. De modo que a forma e o tempo de
espera até conseguir esse acolhimento, essa receptividade, interfere diretamente
na ressignificação identitária dos refugiados.
Milhares de crianças nessa
situação de refúgio encontram-se, por exemplo, em campos de refugiados
localizados na África, na Jordânia, na faixa de Gaza (Palestina), na Índia, no
Paquistão.
Elas fazem parte de um imenso
contingente de seres humanos em profunda vulnerabilidade e desassistência social,
dadas as suas origens, o que tende a não lhes permitir uma facilidade de acesso
a uma efetiva ressignificação identitária, a partir de um novo território para
viver. Ali, elas estão em trânsito, à espera, no aguardo de um sopro de
esperança.
E em paralelo a tudo isso, o
mundo continua a girar, a promover seu desenvolvimento nos mais diversos campos
das Ciências e das Tecnologias e a evoluir em modos e comportamentos, tornando
a sociedade cada vez mais high tech e
conectada a um conhecimento construído sobre alicerces de pura inovação. O que nos coloca frente a frente a um
gigantesco abismo de desigualdade humana; sobretudo, infantil.
Pois é, dentro do universo das
crianças refugiadas também há fronteiras de desigualdade. Aquelas dos campos de
refugiados. Aquelas da Guerra na Ucrânia. Cada qual com suas especificidades
objetivas e subjetivas. Entretanto, não podemos nos esquecer de que, apesar desses
pesares, todas elas fazem parte indistintamente do que chamamos de futuras
gerações.
Isso significa que todas precisam
ser preparadas em suas habilidades e competências para desempenhar seu papel em
um mundo cada vez mais tecnológico, onde os conhecimentos partem e convergem
para esse fim.
Mas, por enquanto, quantas já não
se encontram à margem da própria escola? Quantas já não apresentam um déficit educacional
profundo em razão da sua situação de refugiada? Quantas?
E quanto mais o tempo passa para
elas, mais a inacessibilidade aos direitos que sustentam a dignidade humana se
consolida. Grande parte dessas futuras gerações de crianças refugiadas caminha
rumo à marginalização, a exclusão, a vulnerabilização social na sua fase adulta,
porque foram privadas do seu desenvolvimento humano por guerras, conflitos
armados, disputas territoriais, intolerância étnico-religiosa e/ou eventos
extremos do clima.
E por mais que se tente recuperar
a defasagem dessa formação na fase adulta, os resultados acabam, de um jeito ou
de outro, ficando abaixo da necessidade, da expectativa mínima.
Afinal, essa realidade bate o
martelo sobre a desigualdade humana. Se o mundo high tech, por si só, já impõe uma mudança profunda nas relações de
trabalho, reduzindo significativamente as ofertas de emprego para pessoas
qualificadas e adaptadas à realidade tecnológica, imagina o que será da vida de
quem está na contramão desse processo? Isso é praticamente uma sentença de
exclusão social, na qual desloca sumariamente essas pessoas para as camadas de empobrecimento,
dada a escassez de oportunidades de emprego e renda melhores e satisfatórias às
suas demandas.
Desse modo, a existência de uma
seletivização aos refugiados, de modo que alguns sejam melhor aceitos do que outros,
no fundo, acaba irrelevante, quando consideramos o fato de que quaisquer deles “simbolizam, personificam nossos medos”, na
medida em que “Ontem, eram pessoas poderosas em seus países. Felizes. Como nós
somos aqui, hoje. Mas, veja o que aconteceu hoje. Eles perderam suas casas,
perderam seus trabalhos” 2.
Nesse sentido, sua condição real
traduz o fato de que “não são famintos,
sem pão ou água. São pessoas que, ontem, tinham orgulho de seus lares, de suas
posições na sociedade, que, frequentemente, tinham um alto grau de educação e
assim por diante. Mas, agora eles são refugiados. E eles vêm para cá. Quem eles
encontram aqui? O precarizado. O precarizado vive na ansiedade. No medo. Nós temos
pesadelos. Tenho uma ótima posição social e quero mantê-la” (Zygmunt Bauman,
2018 3).
Portanto, a diáspora contemporânea vem sinalizando um acirramento de tempos sombrios para a humanidade, na proporção de outras expectativas quanto a eventuais desdobramentos beligerantes. O que aponta para a possibilidade de estarmos diante de uma nova edição da Teoria do Contrato Social 4, que não só relativiza, muito mais, a liberdade do ser humano, as suas escolhas e decisões; mas, destrói o ideário de bem-estar político e social coletivo, restringindo-o a grupos cada vez mais limitados e pouco representativos, que passam a se julgar no direito de atuar com demasiada opressão sobre os outros.
1 https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2022/03/4993265-uma-crianca-vira-refugiada-a-cada-segundo-na-ucrania-afirma-unicef.html
2 https://www.fronteiras.com/artigos/zygmunt-bauman-o-medo-dos-refugiados#:~:text=Estas%20pessoas%20que%20est%C3%A3o%20vindo,E%20eles%20v%C3%AAm%20para%20c%C3%A1.
3 Idem 2.