Nós e nossos ... muros, cercas, bolhas, guetos
Nós
e nossos ... muros, cercas, bolhas, guetos
Por
Alessandra Leles Rocha
Não é de hoje que a humanidade
recorre a soluções placebo para lhe dar com os maiores desafios da sua existência,
convivência e coexistência. Uma delas consiste, justamente, em encapsular os
problemas, talvez, pensando e acreditando que dessa forma estariam reduzindo as
suas dimensões e possibilitando uma ação mais certeira. Bem, o exemplo mais
recente diz respeito ao fato de que a “República
Dominicana começa a construir um muro na fronteira com o Haiti, um projeto que
busca coibir a imigração ilegal e o contrabando e o tráfico de drogas e armas”1.
Mais um muro. Mais uma cerca. Mais
uma bolha. Mais um gueto. A história está repleta desse tipo de instrumento de
segregação e apartação social. Toda vez que a sociedade não sabe resolver ou
não quer resolver um problema é assim, que ela toma uma atitude. Algo que é bem
diferente de agir com consciência, com responsabilidade, com compromisso, com
planejamento, com a verdadeira intenção de solucionar. E esse movimento não
altera o curso da história, da dinâmica dos desafios sociais.
Já é notório que a dialogia vem
perdendo seu espaço e importância há muito tempo. Mas, nesse caso, não é só isso
o que está em xeque. Na verdade, o encapsulamento social tornou-se um dos mais
expressivos fracassos da governança. Considerando que muitos governos têm se
permitido guiar pela omissão, pela negligência, pela irresponsabilidade, pela corrupção,
pelo peculato, pela concussão, pela prevaricação, sustentados ou não pelo apoio
de redes do crime organizado, eles acabam por institucionalizar um processo de
deslocamento social da sua população para outros lugares, em nome da sobrevivência.
Sob o peso das violências e das desigualdades,
que se mantêm intensas e cronificadas nos seus países de origem, as pessoas se
veem obrigadas a partir, constituindo dois grupos de deslocamento territorial
distintos, os refugiados e os migrantes. Ocorre que o volume desses
deslocamentos é inversamente proporcional a capacidade de absorção desses contingentes
por outros países. De modo que a dignidade dessas pessoas, independentemente do
grupo ao qual pertençam, refugiados ou migrantes, corre risco.
Sem contar, que em muitas das rotas
de fuga utilizadas, essas pessoas acabam chegando a locais onde a xenofobia, que
é o sentimento de desconfiança, temor ou antipatia por pessoas estrangeiras, tem
sido cada vez mais exacerbado pelas correntes ideológicas da direita e suas
ramificações extremistas. Portanto, elas são consideradas uma ameaça ao equilíbrio
e aos interesses socioeconômicos daquele determinado país, fato que leva ao tal
mecanismo de encapsulamento, ou seja, os muros, as cercas, as bolhas, os
guetos. A manifestação de uma anticidadania pelos próprios países de origem dessas
pessoas, então, fomenta essa construção conjuntural xenofóbica.
De modo que em nenhum ponto dessa
estrada há uma proposição resolutiva para o cerne desse problema que é,
justamente, a garantia de uma vida digna para todo e qualquer ser humano, ou
seja, “Todos os seres humanos nascem
livres e iguais em dignidade e em direitos, dotados de razão e de consciência, devem
agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” (art. 1º - Declaração
Universal dos Direitos Humanos/DUDH). Nesse sentido, “Todo indivíduo tem
direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” (art. 3º - DUDH).
Portanto, toda essa questão
perpassa pelo modo como a sociedade, no conjunto da sua coletividade, entende e
se comporta em relação à governança. A naturalização, a trivialização, a banalização
ou a institucionalização da omissão, da negligência, da irresponsabilidade, da
corrupção, do peculato, da concussão, da prevaricação é que fazem com que
muitas pessoas tenham a sua cidadania, a sua identidade nacional, comprometidas
e ameaçadas a tal ponto, que elas sejam obrigadas a abrir mão das suas raízes,
expondo-se a uma série de outros infortúnios e dissabores sociais. O recente
caso do assassinato de Moïse Kabagambe, um congolês, de 24 anos, no Rio de Janeiro,
exemplifica bem como é desafiador, e pode ser letal, esse deslocamento.
É preciso entender que,
ressalvada uma minoria que não alcança nem 10% da população, o restante vive e
convive sob os efeitos da governança. De modo que a qualquer tempo, em qualquer
lugar, por razões socioeconômicas diversas, eles podem ser compelidos a
abandonar o país. A se lançarem, muitas vezes, sem quaisquer redes de apoio ou proteção,
à condição de “forasteiros”
(outsiders), que é um estereótipo presente nos sistemas sociais vigentes para
auxiliar no mecanismo de ordem e controle social.
Mesmo quando conseguem a
formalização da sua entrada em um país estrangeiro, seja por visto de
refugiado, de migrante ou de permanência, como é o caso do Green Card, nos EUA, essas pessoas jamais serão vistas e aceitas
como “locais” (insiders). Simplesmente,
porque a diferença é marcada em relação à identidade, através de sistemas
classificatórios que fabricam sistemas simbólicos por meio de exclusão. Os “forasteiros” (outsiders) têm outras
bases socioculturais, outros valores, outros princípios, que moldam a suas
identidades nacionais, as quais são impossíveis de caber e se ajustar plenamente
aquele novo lugar.
Portanto, os deslocamentos
forçados, como se têm visto amiúde na contemporaneidade, são feridas sociais
que não cicatrizam. Todos os dias elas encontram razões para abrir, para sangrar,
para doer um pouquinho, para não deixar essas pessoas se esquecerem dos motivos
que as fizeram atravessar as fronteiras. Lançá-los, simplesmente, a uma vida
entre os muros, as cercas, as bolhas, os guetos, é de uma brutalidade, uma
perversidade incompreensível. Nenhum cidadão deveria ser privado de viver na
sua terra natal, à sombra da árvore da sua identidade.
Entendo que essa é uma discussão áspera,
difícil e complexa. Primeiro, porque o país que não se preocupa com seus próprios
cidadãos, não está nem aí com o destino deles. Não se comove. Não se sensibiliza.
Não se condói. Portanto, não tem disposição ou interesse dialógico para
caminhar rumo a quaisquer transformações na sua governança.
Segundo, porque a
irresponsabilidade de uns não pode, simplesmente, resultar em ônus e problemas
diversos para os outros. Eles não podem arcar sozinhos com esse desafio gigante;
mas, por senso humanitário, também, não podem virar as costas para milhares de
desalentados. Então, é preciso equacionar esse impasse, valendo-se de medidas
diplomáticas mais firmes, com sanções econômicas mais severas aos países
causadores dos deslocamentos. Afinal, eles fazem o que fazem desperdiçando
recursos públicos. Se medidas para “a
fonte secar” forem tomadas, inclusive com assinatura de termos de
ajustamento de condutas, eles terão que repensar suas gestões.
Isaac Newton já dizia, “Construímos
muros demais e pontes de menos”. E isso só me faz crer o quanto a humanidade padece
de um medo, o qual ela nem consegue definir exatamente qual é. Às vezes, penso que seja em perder regalias e privilégios.
Outras, que seja perder os espaços, os territórios, os poderes. Algumas, que
seja pela consciência da sua insignificância existencial. Ou para simplesmente
não perturbar a visão com aquilo que a desconforta. Bem, não importa o motivo. O
que importa é que nada disso faz sentido.
Não é à toa que o poeta
norte-americano, Robert Lee Frost, escreveu, “Antes de construir um muro pergunto sempre quem estou murando e quem
estou deixando de fora”. Porque quando se constroem muros, cercas, bolhas
ou guetos, se está isolando do outro; mas, principalmente de si mesmo, posto
que a vida acontece na vastidão da pluralidade. No entanto, nada disso nos
impede de carregarmos as subjetividades da existência humana, os nossos
problemas, as nossas angústias, as nossas fraquezas, as nossas vulnerabilidades,
as memórias, as lembranças, ... o fato de encapsular, de limitar, de guardar,
não é capaz de apagar a vida como ela é. Assim, pensemos com mais objetividade
a respeito.