Quando o único sonho é “virar gente”...

Quando o único sonho é “virar gente”...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ao aceitar o apelo da Defensoria Pública em defesa da libertação de uma mulher que foi presa por furtar alguns alimentos, em um supermercado na capital paulista, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu tratar-se de “furto famélico”, quando alguém furta para saciar uma necessidade urgente e relevante, não havendo violência ou ameaça para tal. Mas, talvez, o ponto mais emblemático desse caso, que não é o primeiro e nem tampouco será o último no país, foi essa mãe de cinco filhos dizer, ao ser libertada, que seu sonho era “virar gente”1.

Fiquei pensando, então, a respeito dessa história e de tantas outras milhares que acontecem sem nos darmos conta ou sequer manifestar algum sentimento. Não sei se me corta mais o coração perceber o grau de ingenuidade dessa mulher ao “sonhar em virar gente”, ou o fato da desigualdade em si que impõe a fome, levando-a ao furto. Porque, com um pouco de sinceridade nas veias, qualquer pessoa em condições menos difíceis do que a dessa mulher é capaz de reconhecer que “virar gente”, nesse país, é um ato deveras desafiador.

Justamente, porque se trata de algo intimamente atrelado as desigualdades, a uma chamada “visibilidade social”, que por aqui vem se tornando cada vez mais impossível. “Virar gente”, portanto, é sinônimo de cidadania, de poder desfrutar dos direitos e deveres, como prega a Constituição Federal de 1988; mas, com 14,4 milhões de desempregados e um índice de miséria atingindo 23,47 pontos (segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e estatística – IBGE), isso parece cada vez mais distante da realidade.

Ao contrário do que muita gente pensa ou queira admitir, a verdade é que antes mesmo que se tenha consciência sobre o significado e a importância da educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e a infância e assistência aos desamparados, o cidadão brasileiro já nasce imerso nessas discussões. Ele nasce desfrutando ou não da acessibilidade a esses direitos, desconstruindo, logo de saída, a premissa de que, no Brasil, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Não, não somos. Por aqui, impera a lei do “vale quanto pesa”, ou seja, o ser humano é avaliado segundo a quantidade de bens, riquezas, poder e influência que dispõe para viver.  

A grande questão é que está nas mãos do topo dessa pirâmide a construção, a formulação das regras e diretrizes, da dinâmica social. Para essa ínfima minoria afortunada, então, não há quaisquer interesses em romper com as desigualdades e cumprir fidedignamente o que prevê a lei maior do país. De modo que ao impedir a mobilidade social, eles acirram a invisibilização e a vulnerabilização de uma gigantesca parcela populacional, expondo-a a mais plena privação da dignidade humana e da cidadania.

Por isso, quando vejo uns e outros bradando sua ferocidade inquisidora, apontando seus dedos em riste e acusando seres humanos por atos semelhantes ao dessa mulher, fico perplexa. Primeiro, pela abstenção em reconhecer o passo a passo das estratégias sociais que aprofundam as desigualdades. Sim, porque essas pessoas não chegam a essa situação por vontade própria.

Esse tipo de discurso, objetivando desqualificá-las e humilhá-las só serve como instrumento de inação para governos e sociedades descompromissadas com a construção do bem-estar coletivo.  O fato é que essas pessoas são oprimidas e impedidas de ter o seu acesso cidadão, a partir de ações que diferem em formas e conteúdos; mas, têm como alvo comum obstaculizar a ascensão e dignidade delas.

Segundo, porque há uma seletivização nessa manifestação. Aqueles que se dispõem a extravasar toda essa raiva, esse ódio, essa fúria contra os menos favorecidos, não se comporta da mesma forma diante dos escândalos de corrupção, dos crimes de “colarinho branco”, das negociatas, dos conchavos, ... Nesses casos, eles costumam “passar pano” sem cerimônia, a advogar com ampla condescendência e empenho, buscando justificar o injustificável.

Fazem isso porque, de algum modo, reconhecem nos outros o reflexo daquilo que cultivam em si mesmos, seu individualismo, sua ganância, sua indiferença, sua cupidez. De modo que o peso da balança julga de modo tendenciosamente desigual, reafirmando, mais uma vez, a inexistência de qualquer vestígio de igualdade social, como se houvesse prerrogativa para uns em detrimento de outros.

Não é à toa que o sistema prisional brasileiro tem atualmente 682,1 mil detentos, quando sua capacidade seria para abrigar 440,5 mil. 54% dos presos têm faixa etária entre 18 e 29 anos, e 64% dos encarcerados é composto por pessoas de cor/etnia preta ou parda. Sem contar que 31,8% do total são presos provisórios, sem julgamento, o que faz desses números uma preocupação, ainda maior, dentro do atual cenário socioeconômico brasileiro 2.

Uma vez que o indivíduo dá entrada no sistema prisional, ele é “fichado”, independentemente, se sua prisão foi justa ou injusta. Então, a partir dessa situação, a sua reinserção social fica comprometida, dada a estereotipização em relação ao ex-presidiário (a). Portanto, essas pessoas estão mais vulneráveis a reincidir no crime ou a sobreviver através de empregos informais, os quais não lhes permitem acesso real aos seus direitos sociais.

Além disso, não se pode esquecer que essa situação de estar sob custódia temporária do Estado brasileiro, se mostra, desde sempre, como uma reafirmação da sua indignidade social, na medida em que as condições carcerárias são degradantes e insalubres. Celas superlotadas e com ausência de ventilação. Falta comida, água tratada, rede de esgoto, tratamento médico e remédios, ...

O que significa que os apenados estão lançados a condições de total transmissibilidade de doenças, tanto dentro do espaço carcerário quanto do lado de fora, em razão das visitas, as quais eles têm direito. Assim, doenças como Tuberculose, Escabiose (sarna), Leptospirose (bactéria presente na urina dos ratos), Sífilis, HIV, Salmonelose (bactéria presente nas baratas), passam a transitar muito além das fronteiras prisionais brasileiras, carreadas por muitos que visitam semanalmente esses locais.     

Portanto, cada manchete de jornal que traz à tona uma história como essa, não faz senão reacender a chama da fragilidade do nosso exercício cidadão, do ponto de vista humanitário. Acontece que, quando a sociedade deixa de pensar, de enxergar, de reconhecer e de se indignar pela existência de seres humanos, vivendo à margem, como se fossem subumanos, subgente, alguém sem o menor valor, ela se torna cúmplice das piores atrocidades.  

Simplesmente, porque ela cria abismos, fronteiras, limites de classificação e “desumanização”, os quais determinam quem tem direito a isso ou aquilo, quem pode e quem não pode, quem merece e quem não merece, quem é gente e quem não é; ou seja, despem o ser humano da sua própria humanidade. Só que isso ocorre no dia a dia, todos os dias, o que de maneira brutal e covarde retira a vez, a voz e a identidade de milhões de pessoas.

Sabe, não é preciso andar longas distâncias, cruzar territórios, para se deparar com o desalento humano, o sofrimento humano. Em todo lugar ele pulsa, ele é intenso, ele é cruel. Em todo lugar ele precisa de acolhimento, de fraternidade, de solidariedade, de empatia. Choca saber que isso, ainda, acontece no Brasil, porque somos ex-colônia, porque vivemos sob a tirania do imperialismo durante séculos.

Fomos e, de muitas maneiras, ainda somos espoliados, maltratados, considerados insignificantes, aculturados, ... e, de repente, nos tornamos repetidores dos mesmos absurdos, dentro das nossas práxis sociais internas. 500 anos de história que não parecem ter representado nada.

Ora, mas em um mundo onde a imprevisibilidade já mostrou que é capaz de “puxar o tapete”, em um simples piscar de olhos, fazer pelos outros aquilo que gostaríamos que fizessem por nós, não é mera questão humanitária. É pura questão de bom senso, porque ninguém sabe quem será a próxima “bola da vez”.

Por isso, não se esqueça, “A solidariedade é o sentimento que melhor expressa o respeito pela dignidade humana” (Franz Kafka – escrito tcheco) e “Aceitar a dignidade de outra pessoa é axiomático. Não tem nada a ver com dominação, apoio, ou atos de caridade em relação aos outros” (Leon Tolstói – escritor russo).