Bem mais do que palavras...

 

Bem mais do que palavras...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Bem mais do que bilhões de pessoas, o mundo é a infinitude existencial expressa pelas palavras. A existência e a sobrevivência humana se estrutura, de maneira dependente, por meio das linguagens, verbais e não verbais, e se consolida por uma expressão identitária própria, que é a língua.

Portanto, o sucesso e o fracasso da raça humana sobre a Terra, não se baseiam somente pela qualidade e organização de suas ideias, em discursos e narrativas; mas, em uma habilidade e competência, muito maior, para transitar com desenvoltura pelos campos da sua língua materna. Tanto que, Rui Barbosa já alertava para o fato de que, “A degeneração de um povo, de uma nação ou raça, começa pelo desvirtuamento da própria língua”.

Daí a alegria imensa em saber que o Museu da Língua Portuguesa, localizado na Estação da Luz, em São Paulo, reabre ao público a partir de amanhã, depois de ser reconstruído, por conta de um incêndio, em 2015, quando grande parte da estrutura e do acervo foi totalmente destruída. Ele é, portanto, um pilar fundamental para o resgate da língua materna nacional.

Afinal, quando se fala na Língua Portuguesa, infelizmente, há uma associação direta ao academicismo da escola, ou seja, aulas diárias, com exaustiva dedicação à norma gramatical, distanciando-se das variantes resultantes da prática da língua em diferentes contextos.

Qualquer um que tenha frequentado a escola, no Brasil, sabe da inexistência de uma formação linguística reflexiva, capaz de oferecer ao aluno cidadão, uma compreensão sobre as origens dessa língua, sua importância socioeconômica, seus papeis sociais, suas variantes, seus sotaques, enfim.

No entanto, todos se recordam das longas conjugações de verbos, que, no fim das contas, não traduzem se sabemos, ou não, a função de cada modo ou tempo verbal, dada a imposição mecânica de repeti-los sem pensar a respeito. Das análises sintáticas repletas de frases soltas, descontextualizadas, que tomavam horas e horas do tempo de estudo, na época do vestibular. Da aprendizagem e reaprendizagem ortográfica, cumprindo as demandas de novos acordos firmados pelos países lusófonos. ...

Tudo muito burocrático; mas, com tão pouca significância para o indivíduo, que ele acabava esquecendo na primeira oportunidade. A reabertura do Museu, então, emerge um outro viés de contato com a Língua Portuguesa. Não só pelo caráter contextualizador; mas, porque abre espaço para um aprendizado sem obrigações, avaliações, notas.

Ir a um museu é uma escolha, por isso, essa decisão chega repleta de expectativas e perspectivas a serem desvendadas. O que faz pensar e concordar que “Toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva. É a fome que põe em funcionamento o aparelho pensador. Fome é afeto. O pensamento nasce do afeto, nasce da fome. Não confundir afeto com beijinhos e carinhos. Afeto, do latim “affetare”, quer dizer “ir atrás”. É o movimento da alma na busca do objeto de sua fome. É o Eros platônico, a fome que faz a alma voar em busca do fruto sonhado” (Rubem Alves – teólogo, pedagogo, poeta e filósofo brasileiro). Mas, também, entender que “A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca [...]” – Paulo Freire – pedagogo e filósofo brasileiro).

Isso explica porque grandes líderes mundiais, do passado e da atualidade, não medem esforços à valorização da Educação e da Cultura de seus países; sobretudo, no que diz respeito a língua. Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul, por exemplo, dizia que “Se você falar com um homem numa linguagem que ele compreende, isso entra na cabeça dele. Se você falar com ele em sua própria linguagem, você atinge seu coração”. Porque essa não é só uma manifestação de cordialidade; mas, de profundo respeito pela cultura do outro, pela identidade do outro.

Então, o Museu da Língua Portuguesa, assim como, todas as bibliotecas e espaços nacionais dedicados à língua, são verdadeiros arautos de cidadania, porque traçam outras possibilidades de acesso, não só à Língua Portuguesa; mas, à Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) 1, as línguas indígenas2 e as línguas indígenas de sinais 3. Bem como, a compreensão sobre a Lusofonia, ou seja, um conjunto de países, cuja língua oficial ou dominante é o Português - Portugal, Brasil, Moçambique, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Goa, Damão, Macau e Timor Leste.

Dentro desse contexto, então, além de ampliar o conhecimento sobre a identidade cultural que permeia a Língua Portuguesa, quem sabe, não se torna possível experimentar profundas rupturas com os mais indesejáveis valores retrógrados nacionais, cujas heranças malditas, na forma e/ou no conteúdo, insistem em permanecer impregnadas nas palavras, na ponta da língua, de muitos por aí.  



1 Reconhecida pela lei n.º 10.436/2002, como meio legal de comunicação e expressão dos surdos.