Um grito de indignação
Um
grito de indignação
Por
Alessandra Leles Rocha
Uma pessoa esquálida e faminta.
Um ser humano entregue à própria sorte no abandono das ruas. Uma fila de
desempregados em busca de uma oportunidade. Um indivíduo despojado dos próprios
documentos de identificação social, por falta de acesso aos serviços
responsáveis. ... São muitos os retratos da indignidade humana, no Brasil.
Todos graves e ultrajantes. Um constrangimento sem fim. Uma situação que se
arrasta, que alterna entre períodos de melhora e piora; mas, que jamais teve
uma solução contundente e efetiva.
Mas, certamente, ninguém cogitou
a possibilidade dessa indignidade alcançar tão duramente o Sistema Único de
Saúde (SUS). Apesar das suas fragilidades e inconsistências, em muitos
momentos, ele sempre se manteve a estrutura de apoio necessária a grande massa
da população brasileira, no âmbito do serviço público. A qualquer tempo, em
quaisquer eventualidades, os cidadãos brasileiros têm a consciência de que
podem contar com essa rede de atendimento e serviços essenciais à saúde.
Acontece que, em razão de estarem
tão absortas pelo ritmo frenético do cotidiano e suas obrigações, as pessoas
acabam não estabelecendo uma conexão sobre os fatos que permeiam a sua
realidade e só se dão conta, quando a situação colapsa efetivamente. Entretanto,
a Economia e a Saúde são dois elementos estruturais da sociedade que caminham
simultaneamente juntos.
De modo que as perturbações no
campo econômico, no país, refletem diretamente no campo da saúde, ou seja, pode
haver restrições orçamentárias para a manutenção dos serviços públicos de
saúde, pode haver uma sobrecarga no SUS decorrente de um contingente de pessoas
que perderam o trabalho e a possibilidade de um plano de saúde privada, pode
haver cortes nos programas de apoio médico-hospitalar – medicação gratuita,
mutirões de cirurgias, serviços de reabilitação física –, pode haver mais dependência
dos serviços do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) pela demora de algum
atendimento que tenha impactado a saúde do cidadão – uma cirurgia, um
tratamento específico –, ...
Com a instalação da Pandemia essa
situação tornou-se mais evidente. O problema é que não houve uma resposta
adequada as demandas que surgiram e, inevitavelmente, o gargalo se afunilou
ainda mais. Ao retardar na sua tomada de decisões, o país expôs a população a
uma situação de indignidade sanitária explícita.
São filas e mais filas,
aguardando por um leito em enfermaria ou em Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
A insuficiência no abastecimento de oxigênio para os hospitais e unidades de
atendimento à saúde. A falta das medicações necessárias para a intubação dos
pacientes em estado gravíssimo. As condições de sepultamento das vítimas, em
razão do aumento exponencial dos óbitos. A inexistência de uma rede de apoio
auxiliar para dar continuidade ao tratamento pós-COVID-19 – fisioterapia,
fonoaudiologia, nutrição, psicologia, assistência social – aos pacientes que
apresentaram sequelas da doença. A lentidão na aquisição e na imunização da
população. Enfim...
O pior é que essa situação
extrapolou as fronteiras do atendimento público e chegou até os serviços
privados ou particulares. Então, para qualquer lado que se olhe, o caos e a
indignidade estão presentes. De modo que a população, na sua grande maioria,
está apavorada, com medo de precisar dos serviços de saúde e morrer à mingua,
desassistida e, para completar, distante da família.
Um sentimento tão profundo que
não se restringe apenas aos eventuais pacientes; mas, especialmente, a todos os
profissionais que estão nas linhas de frente da Pandemia. Afinal, eles estão expostos
diariamente ao vírus; mas, também, as condições exaustivas e insalubres
impostas pela alta demanda pandêmica acrescida das situações de rotina que
continuam a acontecer.
Cada relato, que chega dos
serviços de saúde no Brasil, soa como um grito de desespero e horror, que
poderia ter sido, no mínimo, mitigado. De repente, emerge uma consciência ácida
e cruel do quanto a indignidade tem sim, suas raízes na incompetência, na
negligência, na irresponsabilidade humana. De algum modo, o ser humano aceita
que seus semelhantes sejam privados da dignidade, dos seus direitos
fundamentais, da sua própria vida, quando vira as costas, se omite e se cala
diante dos absurdos.
Infelizmente o ser humano tende a
ser assim. Como escreveu Bertolt Brecht, “Primeiro,
levaram os negros. Mas, não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida,
levaram alguns operários. Mas, não me importei com isso. Eu também não era
operário. Depois, prenderam os miseráveis. Mas, não me importei com isso.
Porque eu não sou miserável. Depois, agarraram uns desempregados. Mas, como
tenho meu emprego, também não me importei. Agora, estão me levando. Mas, já é
tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo”. O
ser humano sempre se esquece que ao se esquecer dos outros pode haver alguém
que se esqueça dele também.
É assim que se fia a indignidade
humana. Despercebendo. Desqualificando. Desconsiderando. Invisibilizando os
outros, até que, desaparecemos também. Quando nos permitimos acreditar que uns
são mais que outros, a naturalizar as desigualdades, nos abstemos de pensar que
essa ideia não é privativa da nossa consciência e que outros podem tê-la
também. Por isso há tantas indignidades espalhadas pelo mundo e tantos
indigentes cegos da sua própria condição.