Sociedade. Vida. Morte. E seus vieses preconceituosos...
Sociedade. Vida. Morte.
E seus vieses preconceituosos...
Por Alessandra Leles
Rocha
O assunto de 2020 é a Pandemia e não poderia ser diferente. Um
novo vírus chegou derrubando as portas, desestabilizando a ordem, nivelando por
baixo a humanidade, .... Enfim, causando o caos. Estranho é que, apesar de tudo
isso, ele não foi o primeiro e nem será o último na história. Talvez, então,
esse frisson não tenha a sua raiz nesse ser diminuto; mas, no próprio ser
humano e, mais precisamente, nos seus vieses preconceituosos.
De fato, o COVID-19 é democrático no espectro de ação. Em gotículas
de saliva ele é disseminado pelos ambientes e conduzido as vias aéreas de quem
estiver no lugar errado na hora certa. Todos podem ser a bola da vez. Entretanto,
ele não produziu manifestações diretas de preconceito quanto a sua transmissibilidade.
A proposta de isolamento social não veio para impor um banimento social
definitivo; mas, a fim de se evitar temporariamente a propagação do contágio
viral.
No entanto, ela sim, chegou banhada pelo preconceito, na
medida em que para as parcelas menos favorecidas da população não foram
oferecidas oportunidades de permanecerem nesse isolamento. Quanto aos privilegiados o que se viu foi um
descontentamento diante da ideia e uma enxurrada de investidas transgressoras.
Como é possível perceber, a sociedade não se enxerga seletiva
em relação a imposição de determinados comportamentos. Assim, quando falo a
respeito da ideia de preconceito, a qual se fez presente para mim nesse momento
histórico, busquei ir um pouco além do que descrevi acima, percorrendo outros
aspectos.
Considerando que já circulavam entre nós milhões de agentes patogênicos
por segundo, havia uma tendência tão convicta de acreditar na potencialidade
solutiva da ciência para resolver quaisquer problemas, que as pessoas não
dispensavam uma atenção tão contundente como agora. Era como se as doenças
atingissem a sociedade de maneira pontual, levando a cada indivíduo a se
responsabilizar por seus próprios cuidados e soluções, ou seja, como se não houvesse
uma interação coletiva.
Há quase 40 anos, por exemplo, foi descoberto o vírus da Imunodeficiência
Humana (HIV) que desenvolve a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS). Desde
então, o mundo científico vem empenhando todos os seus máximos esforços a
estudar o vírus no propósito de preveni-lo, tratá-lo ou, até mesmo, curá-lo;
visto que, essa doença já fez, aproximadamente, mais de 35 milhões de vítimas
ao redor do mundo.
No entanto, observando a comoção causada pelo COVID-19, junto
a população atual, é fácil perceber que com o HIV o processo foi um pouco
diferente. Não só por conta das conjunturas sociais da época, década de 80;
mas, porque a AIDS foi inicialmente estigmatizada como uma doença pertencente aos
gays e usuários de drogas injetáveis; portanto, segmentos já popularmente segregados.
Isso fez com que, de um modo geral, as pessoas não enquadradas
nesse perfil se sentissem imunes ao vírus e sem uma necessidade efetiva de
engajamento social em favor das políticas de saúde para a doença que surgia. O
que levou muitas delas a contraírem a doença inadvertidamente em relações
sexuais sem uso de preservativo e/ou em condições de promiscuidade, em transfusões
de sangue e hemoderivados sem controle de qualidade sanitária, ou em
compartilhamento de instrumentos perfuro cortantes em serviços de saúde e de
estética, tais como bisturis, alicates, tesouras etc.
Mas, até que a ciência conseguisse provar efetivamente os
caminhos reais da transmissão – fluídos corporais –, o que para surpresa de
muitos eram comuns a outros patógenos como o vírus da Hepatite C e a Sífilis, o
preconceito se fixou severamente no inconsciente coletivo das pessoas; de modo
que, a AIDS ainda representa um símbolo de intolerância e segregação, o que faz
com que suas vítimas padeçam não só pela doença imunológica e seus
desdobramentos, mas pela morte social decretada subliminar ou diretamente pela
sociedade.
Mesmo assim, nesse momento crucial de discussão em torno do tênue
limite entre a vida e a morte, ninguém se pergunta sobre os avanços das
pesquisas em torno da AIDS; a qual conta com tratamentos mitigadores disponíveis,
mas nenhuma vacina para prevenção. O silêncio que ecoa sobre o HIV, também, se
propaga por outras doenças, por meio do preconceito social. Isso significa que
as parcelas tidas como “bem-nascidas”, providas de regalias e direitos “extras”
têm a falsa impressão de estarem imunes a diversas patologias que infestam o
mundo à revelia de sua “bolha”. Como se as suas atitudes preconceituosas,
discriminadoras e intolerantes fossem suficientemente capazes de blindar o
contato com tais indesejáveis enfermidades. Só que não.
Tuberculose, Dengue, Febre Amarela, Zika, Chikungunya,
Malária, Hanseníase, Raiva, e tantas outras doenças, estão por aí fazendo
vítimas sem que a sociedade dispense a devida atenção. Não se trata de uma
questão geográfica entre o rural e o urbano, ou a periferia e a zona sul;
porque as patologias não exigem essa especificidade, inclusive, pelo fato do mau
uso e ocupação do solo que a própria sociedade estabeleceu. Na geografia do mundo
real as pessoas se deslocam, transitam pelos espaços.
E se não carregam consigo a possibilidade de transmissão da
doença, por excreção de fluidos corpóreos – tosse, escarro, sangue, fezes,
urina –, podem carregar o agente infeccioso – vírus, bactérias, protozoário,
fungo – para diferentes lugares até que possam se encontrar com o vetor
específico presente no ambiente e, assim, disseminar o problema.
Basta pensar um pouquinho, então, para perceber que são
milhares de pessoas com as quais mantemos contato direta ou indiretamente nas
ruas, no transporte público, nos shoppings, nas feiras, nas festas, enfim... O
que dentro de uma lógica absolutamente natural não nos permite inferir exatamente
sobre a rotina de hábitos e comportamentos de cada uma delas, para saber se
seriam ou não potencialmente transmissoras disso ou daquilo.
Sem contar a incerteza que ronda os caminhos de prevenção,
tratamento e/ou cura dessas inúmeras doenças; pois, nem todas contam com tal
arcabouço e, nem tampouco, uma resposta individual de cada um, plenamente satisfatória.
Sim; protocolos, remédios e vacinas vez por outra não funcionam em algumas
pessoas. Entre a vida humana e a ciência há mistérios indecifráveis que
interrompem o fluxo de sucesso esperado. Então, o preconceito que aflora do sentimento
de superioridade capital também se esvai como fumaça quando a realidade caminha
por estradas mais humanas e menos idealizadas.
Assim, enquanto apostam suas fichas em alguma vacina que
pretende prevenir a raça humana do COVID-19, a humanidade em sua grande maioria
segue alheia ao contínuo do mundo, com todos os seus perigos e desafios. Não
enxergam que podem, como cantou Caetano, “morrer de susto, de bala ou vício” 1 a qualquer instante; mas, também, de doenças
conhecidas ou não. O que significa que ainda se rendem aos apelos narcísicos
dos seus preconceitos “démodé”, que
não servem senão ao agravo das conjunturas pretéritas e atuais. Porque no fim
das contas, “todo conceito que o homem
não modifica com sua evolução, torna-se um preconceito” 2 (Carlos Bernardo Gonzales Pecotche).
2 Foi um escritor, educador, pedagogista, conferencista e pensador humanista, conhecido como fundador da Logosofia.