Reflexões sobre a objetificação humana
Reflexões
sobre a objetificação humana
Por
Alessandra Leles Rocha
Há algumas décadas
me deparei com uma imagem em um livro, cuja referência dizia “Em uma sociedade de consumo tudo se transforma em mercadoria”.
Eram várias cabeças raspadas, exibindo no dorso delas um código de barras.
Aquilo me deixou profundamente consternada em razão do significado reflexivo presente.
De fato, em um ponto da história a humanidade passou a objetificar seus pares
com tamanha naturalidade que chega a ser assustador.
A objetificação
retira do indivíduo a possibilidade de ser e existir em toda a sua plenitude.
Desse modo, ela suprime sumariamente o valor das subjetividades humanas, atrelando-as
a uma precificação bárbara e cruel. Aptidões, talentos, habilidades, competências
tornam-se inócuas se não desencadearem automaticamente uma materialização
capital, uma ascensão social. Ou seja, pessoas se tornam visíveis apenas sob o
reflexo daquilo que podem possuir e desfrutar em termos materiais.
Isso significa
que por trás do mundo competitivo se esconde uma perversa narrativa que conduz milhões
de seres humanos a mais absoluta exaustão existencial. Porque, segundo esses “ditames”,
elas precisam SER o que puder lhes favorecer o TER, não importando o quanto
isso lhes custe ética, moral ou psicologicamente ou quais os meios necessários
para alcançar esse patamar. A raça humana foi, portanto, submetida ao altar dos
sacrifícios mundanos, para honra e glória da riqueza e do poder.
Relembrando os
relatos da Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, quando os
trabalhadores das fábricas trabalhavam em torno de 18 horas por dia, em
condições insalubres e por salários miseráveis; cabe refletir a respeito no
contexto das conjunturas atuais. Porque se hoje existem leis trabalhistas,
entidades voltadas para as relações de trabalho, como é o caso da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), o movimento de escravização social transita
muito mais pelos caminhos dos valores que regem o inconsciente coletivo do que
simplesmente pela necessidade de sobrevivência e dignidade humana.
A garantia do
espaço de cada um na sociedade vem sendo estabelecida na lógica do “vale quanto pesa”. Portanto, não basta
estar vivo. É fundamental ser capaz de produzir bens e riquezas, para adquirir
o passaporte de inserção nas camadas de privilégios e, assim, tornar-se visível,
importante e respeitável; inclusive, com direito a opinar e defender sobre seus
próprios interesses e regalias.
De modo que as
pessoas, então, trabalham, trabalham, trabalham... enquanto descobrem que a
vida nunca lhes dá garantias sobre nada, exceto a morte. Essa dinâmica absurda
é tão sacrificante que gera certo torpor depois de algum tempo; o que faz com
que elas permaneçam inertes no movimento. Observado bem de perto, isso se
traduz no adoecimento da sociedade.
Assim, surgem as
legiões de soldados de lutas inglórias. Pessoas que lutam bravamente por
questões que na verdade não lhes fazem sentido algum, foram apenas impostas e
reafirmadas no seu inconsciente por meio de mecanismos sugestionáveis, os quais
lhes impedem de construir um pensamento próprio e raciocinado. Ninguém lhes
pergunta, de fato, como quando ou o que querem; porque a sua resposta é dispensável
ao conjunto do sistema.
Assim, na medida
em que suas vozes se calam, suas almas vão sendo lentamente asfixiadas e
comprometidas pelas doenças da mente e, por consequência, do corpo. O ser
humano objeto, produto, mercadoria é uma concepção que interessa a alguns; mas,
que jamais se constitui na verdade. Não há como transmutar a essência humana; daí
a avalanche de sofrimentos, de compulsões, de frustrações, de angústias, de
depressão, ... de suicídio.
Esse caminhar
da raça humana o fez perder o fio da meada de si mesma. Quem não se lembra do poema Retrato, de
Cecília Meireles 1? Embora suas palavras
busquem refletir o envelhecimento, particularmente o vejo como a melhor
tradução do distanciamento que a humanidade tem se permitido da verdadeira e
primeira identidade. Aqui e ali vê-se pessoas perdidas, atônitas, perturbadas
diante das mais corriqueiras trivialidades. Não sabem lidar nem com o simples e
nem com o complexo do mundo, porque não sabem quem são, o que são, o que querem
de si e para si. As pressões e opressões lhes fizeram presas ao dilema, “Ou
isto ou Aquilo” 2, como se a vida só
pudesse ser vista sob o peso das escolhas, as quais no fundo não mais lhes
pertencem dadas as conjunturas sistêmicas.
Oscar Wilde
escreveu “há momentos em que é preciso
escolher entre viver a sua própria vida plenamente, inteiramente, ou assumir a existência
degradante, ignóbil e falsa que o mundo, na sua hipocrisia, nos impõe”. E
ele está certo. Porque, a existência é breve. Um dia mercadorias perdem a
utilidade, o valor; são descartadas para que outras ocupem seu espaço e cumpram
o seu papel. Mas, gente tem vida; e a vida nunca deveria perder a utilidade,
nem o valor, independentemente do tempo, do lugar e/ou do próprio ser humano.
1 “Eu não tinha este rosto de hoje, / Assim
calmo, assim triste, assim magro, / Nem estes olhos tão vazios, / Nem o lábio
amargo. / Eu não tinha estas mãos sem força, / Tão paradas e frias e mortas; / Eu
não tinha este coração / Que nem se mostra. / Eu não dei por esta mudança, /
Tão simples, tão certa, tão fácil: / - Em que espelho ficou perdida / A minha
face? ”. (https://www.escritas.org/pt/t/1505/retrato)