Já foi dada a largada...
Já
foi dada a largada...
Por
Alessandra Leles Rocha
Os impactos econômicos oriundos da
Pandemia já sinalizam mundialmente que haverá um empobrecimento significativo
da população. Portanto, tendo em vista de que as relações humanas transitam
pela dinâmica da economia, não é difícil compreender que transformações
profundas nesse campo irão acontecer também. O que de certo modo vai
oportunizar a ampliação da discussão em torno do significado das desigualdades
em nível mundial.
É certo que as bases de coexistência
humana sempre se permitiram o hasteamento de fronteiras e linhas divisórias bem
demarcadas. A humanidade, no fundo, nunca se incomodou tanto assim com a existência
da escravidão e da supressão de direitos humanos essenciais. Houve sempre um
discurso legitimador, e às vezes até legalizador, de uma “pseudo superioridade”
oriunda do gênero, da raça, do credo, do conhecimento, do status social para “justificar”
atos e comportamentos discriminatórios, abusivos e opressores.
A questão é que mesmo a revelia, as
metamorfoses do mundo conseguiram alcançar a grande base da pirâmide social e
fornecer-lhe elementos capazes de descortinar sua própria percepção em relação
ao seu papel e lugar na sociedade. Aos trancos e barrancos essas pessoas foram
sendo atingidas pelas ondas de informação promovidas pelas tecnologias e, por consequência,
rearranjando caminhos para manifestação do seu próprio discurso. De modo que
elas vão sabendo muito mais e melhor sobre as narrativas que descrevem a sua
trajetória ao longo do tempo.
Isso significa que, apesar das
fragilidades e inconsistências dos sistemas educacionais vigentes, ainda sim
essas pessoas adquiriram um lastro de conhecimento e formação intelectual que
não pode mais ser desprezado. Mesmo com inúmeros desafios no que tange a
acessibilidade digital, as novas tecnologias propiciaram um efeito
multiplicador informativo e, por assim dizer formativo também, de extrema relevância
dentro dessa estrutura populacional. A consciência cidadã está sendo, então, lapidada
a partir desse movimento que ainda é incipiente; mas, já demonstra grande potencial.
A invisibilidade social nas suas
mais diversas frentes vai perdendo, portanto, a sua força na garantia das
desigualdades, porque essa parcela da população descobriu onde está o seu lugar
de fala e de mobilização. Durante o ápice da Pandemia no Brasil isso ficou bem
evidente. Para evitar o pior dentro do pior, as pessoas se uniram em mutirões
de colaboração a fim de suprir as demandas emergenciais daqueles em condições
sociais de extrema precariedade e vulnerabilidade; independentemente de
eventuais medidas governamentais a respeito.
Como foram impactadas severa e
simultaneamente parcelas distintas da população, o que se viu foi uma ação
cooperativa e solidária de profunda consciência a respeito das desigualdades. Houve
uma reflexão motivada a partir da realidade nua e crua que estava diante de todos,
ou seja, a desigualdade saltou das páginas dos livros para as manchetes midiáticas,
as esquinas, a vida como ela é. Quem não conseguia enxergar a pobreza e a miséria
no país, então, se surpreendeu com o que viu.
Esse processo árduo e abrupto fez
com que milhões de pessoas reavaliassem as suas expectativas e perspectivas
existenciais. Talvez, pela primeira vez depois dos movimentos de Contracultura nas
décadas de 60 e 70 e da campanha humanitária em favor da África na década de 80,
a humanidade parou novamente para rever seus conceitos e valores consumistas,
individualistas e narcísicos. A Pandemia colocou todos os seres humanos em um
só barco para enfrentar a mais terrível tormenta. As diferenças humanas foram
niveladas ao mesmo patamar. O dinheiro não se mostrou fundamentalmente o fiel
da balança entre a vida e a morte; mas, demonstrou que a sua partilha
humanitária poderia mitigar o sofrimento e ao mesmo tempo manter as engrenagens
econômicas trabalhando com menos sobressaltos.
Mas não bastasse a grande ameaça no
campo da saúde pública, afligindo as populações. O racismo estrutural presente nos
Estados Unidos, e no Brasil, marcou sua intransigência perversa várias vezes
neste ano, culminando em uma onda de manifestações ao redor do mundo e de
discussões profundas acerca do colonialismo e neocolonialismos. Seres humanos
tomaram as ruas em defesa da igualdade e da equidade. Marcharam em favor de
políticas efetivamente humanitárias. Gritaram em favor de paz, de amor, de
oportunidades, de liberdade, para que todos possam, enfim, respirar.
Talvez, seja esse processo de
transformação em curso que esteja desestabilizando o equilíbrio de quem se
sente tão incomodado ou ameaçado com o esfacelamento das divisões sociais. Elas
não conseguem perceber que essa mudança representa a ruptura com milhares de
desafios que batem a porta de cada um todos os dias. A verdade é incontestável:
o ciclo que retroalimenta a desigualdade perpassa pelos desequilíbrios que
permitimos fomentar. Individualmente o ser humano é responsável direta ou
indiretamente pela manutenção das mazelas que afligem a sociedade como um todo.
Como bem disse José Saramago, “Estamos neuróticos. Não só existe
desigualdade na distribuição da riqueza como também na satisfação das
necessidades básicas. Não nos orientamos por um sentido de racionalidade
mínima. A Terra está rodeada de milhares de satélites, podemos ter em casa cem
canais de televisão, mas para que serve isto neste mundo onde tantos morrem? É
uma neurose coletiva, as pessoas já não sabem o que é que lhes é essencial para
a sua felicidade” 1.
No entanto, reafirmo minha crença: já foi dada a largada... a mudança já acontece independentemente de A, B ou C. O que de melhor temos a fazer nesse caso é prestar atenção aos sinais. É não resistir valendo-nos de tolices e bobagens inúteis. Quem sabe essa não seja a nossa grande oportunidade de nos tornarmos humanos, hein? Porque para o que se acredita como senso de humanidade ainda nos falta um bocado.