A necessária reafirmação da consciência humana

 

A necessária reafirmação da consciência humana

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

É certo que a ignorância, em termos de desconhecimento, é sempre apaziguadora das dores da alma. Como diz o provérbio, “aquilo que os olhos não veem, o coração não sente”. Mas, a fuga da realidade é ineficaz em si mesma; na medida em que não perdura muito tempo. No instante do “de repente” a realidade se mostra como verdadeiramente é, nos convocando sem meias palavras a refletir e nos posicionar.

Precisei de tempo, de maturidade, de conhecimentos e, sobretudo, de despojamento das invisíveis teias do meu contexto social para entender a importante significância do lugar de fala no mundo, partindo de datas e comemorações destinadas a oportunizar a vez e a voz de determinados grupos.

Não, não é desimportante a existência do Dia Internacional da Mulher (08/03), do Dia Internacional do Homem (19/11), do Dia Mundial do Idoso (1º/10), do Dia Internacional das Pessoas com Deficiência (03/12), do Dia Internacional do Orgulho LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) (28/06), do Dia Internacional dos Povos Indígenas (09/08) e do Dia Nacional da Consciência Negra (20/11), como muitos querem fazer pensar.

Porque apesar da existência do Dia dos Direitos Humanos, 10 de dezembro, o qual deveria efetivamente contemplar as manifestações e as reivindicações de todos os representantes da raça humana; ainda que busque por isso, a resistência transita entre nós muito presente e significativa. As fronteiras do preconceito e da intolerância à diversidade social são obstáculos reais a construção de uma coexistência harmônica e pacífica no mundo.

Em particular, no caso dos negros, vejam que a data instituída é em nível nacional; embora, saibamos bem que não só o Brasil foi testemunha ocular, partícipe direto da prática escravagista, no contexto do colonialismo mundial. Aliás, é preciso reconhecer que as práticas de exploração, subjugação e servidão sempre estiveram presentes na história humana acobertadas pela permissividade perversa dos interesses sociais em todo o mundo e em todo o tempo.

Mas, tendo em vista a manifestação constitucional de 1988, de que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” 1, os movimentos em favor da consciência negra no Brasil tiveram uma grande oportunidade de ter as suas narrativas e discursos enfim acolhidos. Era o ponto de partida fundamental, do ponto de vista jurídico, para promover e ampliar as discussões acerca de todas as suas demandas, as quais se arrastavam ao longo dos séculos.

Nesse contexto os negros no Brasil vêm conquistando o seu lugar de fala através da celebração da Lei 7.716, de 5/01/1989, que definiu os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor; da Lei 10.639, de 9/01/2003, que alterou a Lei n.º 9.394, de 20/12/1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, incluindo no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”; da Lei 12.519, de 10/11/2011, que instituiu o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra; da Lei 12.711, de 29/08/2012 (Lei de Cotas), que dispôs sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. Ainda sim, ter alguma voz não representa exatamente ter alguma vez na sociedade.

As feridas da escravidão nacional persistem diante da passagem do tempo. As raízes do colonialismo não pereceram e fazem questão de continuar manifestando sua presença pelas práticas da violência verbal, moral e física; mesmo que a população negra no Brasil represente, em pleno século XXI, mais de 50% do total2. A verdadeira inserção dos negros à sociedade, após a abolição da escravatura em 13 de maio de 1888, nunca aconteceu. Nesses 132 anos, a população negra foi obrigada a conviver com a discriminação, a marginalização, a violência, a privação de seus direitos fundamentais básicos; embora, continue sendo a grande força motriz da nação.

Por isso, a reafirmação diária da consciência negra é tão fundamental; o que não significa ser somente para os negros. Para eles esse movimento de conscientização significa a mola propulsora para a ruptura com as ideias nocivas e degradantes que rondam o seu inconsciente coletivo, na tentativa de fazê-los crer menores na sua essência e valor humano. O que o movimento de consciência negra busca é fazê-los se enxergar na dimensão da sua grandeza através da expressão da sua presença no espaço social.

Enquanto que, para o restante da sociedade brasileira, essa consciência é necessária para aspirar o futuro. Enquanto não o faz, ela permanece atrelada ao passado e aos seus valores equivocados, bárbaros e cruéis. Para um mundo em que o homem já pisou na Lua, construiu tecnologias fantásticas, descobriu a cura para inúmeras doenças, é totalmente contraditório e absurdo que exista quem insista em ideias como a eugenia, o sexismo, o racismo, a xenofobia.  

Não é sem razão que Nelson Mandela em seu discurso de posse, em 1994, afirmou: “Nosso medo mais profundo não é que sejamos inadequados. Nosso medo mais profundo é que sejamos poderosos demais. É nossa sabedoria, nossa luz, não nossa ignorância, nossa sombra, o que mais nos apavora. Perguntamo-nos: ‘Quem sou eu para ser brilhante, belo, talentoso, fabuloso? ’ Na verdade, por que você não seria? Você é um filho de Deus. Seu medo não serve ao mundo. Não há nada de iluminado em se diminuir para que outras pessoas não se sintam inseguras perto de você. Nascemos para expressar a Glória de Deus que há em nós. Ela não está em apenas alguns de nós; está em todas as pessoas. E quando deixamos que essa nossa luz brilhe, inconscientemente permitimos que outras pessoas façam o mesmo. Quando nos libertamos de nosso medo, nossa presença automaticamente liberta as outras pessoas”.

A questão é que ainda existem aqueles que se consideram “poderosos demais”, enquanto outros são levados a se sentirem “poderosos de menos” ou “sem poder”. Esse desequilíbrio é fatal para a edificação de muros, de fronteiras, de abismos de desigualdade, de opressão, de violência. No entanto, não precisamos de muito para perceber o que está bem diante do nariz nesse momento, ou seja, o mundo está à beira do caos Pandêmico.

Afinal, o COVID-19 está entre nós. Não há tratamento preventivo. Não há vacina disponível. Há muita resistência da população as medidas sanitárias propostas pelos governos. Há prejuízos sociais de diversas ordens, especialmente econômicos; os quais tendem a se desdobrar em inúmeras consequências difíceis em longo prazo. Há centenas de milhares de mortos. Há dor. Há sofrimento. Há desespero. Há ausência de respostas. Só não há razão alguma para nos sentirmos mais ou melhores uns aos outros. Quando qualquer um pode ser a bola da vez, a ideia de maioria e de minorias perde o sentido.

O que a realidade sinaliza é que não há mais espaços para regalias, privilégios, preconceitos e coisas assim. Não há esse ou aquele, isso ou aquilo, há uma raça de gente refém do imponderável. Tendo a obrigação de ser humana, no sentido coletivo de defesa da própria espécie. De repente descobrimos que John Lennon tinha razão, quando nos pediu para imaginar “todas as pessoas partilhando o mundo”3; pois, é nesse sentido, queiram ou não, que a humanidade está caminhando. Afinal, todas as vidas importam.   



1 Art. 5º, Constituição da República Federativa do Brasil (1988).

2 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

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