A liberdade depois da página dois...
A
liberdade depois da página dois...
Por
Alessandra Leles Rocha
Um dos vieses
interessantes da Pandemia de COVID-19 no mundo tem sido a resistência das
pessoas ao cumprimento das normas sanitárias estabelecidas pelos governos. Muitas
são as aglomerações diárias. As festanças de arromba. A ausência do uso de
máscaras. O escárnio e a indiferença. .... Tudo justificado pela afirmação de
que tais medidas são ataques e cerceamentos à liberdade individual.
Percebo, então, que é
preciso refletir profundamente a respeito para dimensionar de algum modo os parâmetros
que definem o que é ser livre nesse contexto pós-moderno. Posto que nenhum
conceito que permeia as subjetividades humanas se estabelece isolado de
eventuais interferências.
A liberdade é um
deles. Ela não se sustenta em uma base absoluta de ausência de limites. A liberdade
é relativa a partir das conjunturas da dinâmica social. Ninguém pode tudo. Ninguém
é livre para ser e agir além das regras já preestabelecidas pela sociedade.
Então, de tanto
observar o mundo nesses últimos meses, comecei a perceber uma inversão de proporcionalidade
entre a liberdade e as violências seja no campo da barbárie, do autoritarismo
e/ou da tirania. O outro só pode isso ou aquilo se, e somente se, eu aceitar. O
que colabora para uma sociedade repleta de frustrações, de carências, de
dificuldades em coexistir, de desequilíbrios de ordem relacional e
comportamental diversos.
No âmbito individual
todos querem ser livres; mas, a liberdade do outro incomoda, desconforta,
agride. Portanto, a resposta vem das manifestações da violência física, psíquica
e afetiva; bem como, dentro de linguagens verbais e não verbais bem definidas. De
modo que um código paralelo de ordenamento social confronta as leis, as normas
e as doutrinas que regem a sociedade, tanto de maneira direta quanto
subliminar.
Não é à toa que a
mídia tem noticiado tantos casos de assassinato de candidatos ao pleito
eleitoral desse ano. Essa violência configura um modo de controle social
silencioso que repercute diretamente sobre a liberdade de escolha da população.
Trata-se de uma manifestação por meio de linguagem indireta, na qual o fato
leva a concluir que candidatos ligados a esse ou aquele grupo não devem ser
escolhidos.
Mas, são milhares os
exemplos. A politização das eventuais vacinas contra a COVID-19. O abandono da
educação e da cultura a partir de narrativas ideologizadas por extremismos. Os casos
de violência contra a mulher e feminicídio. As investidas discriminatórias e
letais contra pessoas LGBTQI+, ou seja, a LGBTfobia. O bullying dentro dos espaços de convivência social, tais como
escola, trabalho, igreja etc. A manutenção do racismo estrutural por meio da recorrência
de atos e narrativas depreciativas e degradantes; bem como, pela carência de
políticas públicas de afirmação da igualdade e equidade. Enfim.... De repente,
é como se a liberdade existisse em bolhas individualizadas que flutuam em um
mar de opressão e de privação.
É visível a perda da
capacidade dialógica da sociedade. Quase que na base do “manda quem pode; obedece quem tem juízo”, as ideias estão sendo
impostas. Os valores estão sendo predeterminados. Os comportamentos estão sendo
redefinidos. ..., mas, não há espaço para uma discussão ampla que contemple uma
análise crítico-reflexiva a respeito. Mesmo que muitos pensem que podem
transgredir as regras, suas atitudes estão balizadas pela permissividade
existente no campo dos interesses de quem detém o poder de vigiar e punir.
Como as pessoas estão
absortas no seu ideário de liberdade transgressora, elas deixam de
desconsiderar ou de perceber a existência sublime e maior da lei da ação e
reação. Por isso, quantos têm experimentado por si mesmos as consequências e
desdobramentos oriundos da sua ânsia libertária? Direta ou indiretamente o ônus
da culpa lhes recai sobre os ombros; pois, a vida ainda permanece implacável e
a liberdade ainda é só uma perspectiva. No fundo é como explicou Johann Goethe,
“ninguém é mais escravo do que aquele que
se julga livre sem o ser”.
Na relatividade do
tempo, da vida, talvez seja oportuno que a humanidade se debruce sobre o agora,
no que diz respeito à liberdade. Nelson Mandela já dizia, “ser pela liberdade não é apenas tirar as correntes de alguém, mas
viver de forma que respeite e melhore a liberdade dos outros”. No entanto,
fechados nos casulos do individualismo selvagem, os seres humanos têm se
permitido caminhar imprevidentemente rumo ao silêncio arbitrário, ao fim das
práticas democráticas que se conhece. De modo que o afã da liberdade cedeu
espaço para o surgimento de ridículos tiranos e uma enxurrada de pequenos
poderes, que não farão senão incinerar quaisquer lampejos de liberdade em muito
pouco tempo. Esse é o ponto em questão.