O lado prático da vida

 

O lado prático da vida

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Embora muitos tenham horror a essa palavra, REFLEXÃO é o que está à frente das prioridades humanas desde sempre. Quem reflete olha o mundo com mais propriedade, analisa pela própria régua os acontecimentos, extrai conclusões por si mesmo... Enfim, é independente, autônomo e autoral nas suas percepções e comportamentos. E o tempo em que vivemos pede isso. A efervescência das mudanças exige uma expressão mais contundente de criticidade, de posicionamento, de voz e de ação. No entanto, o que parece emergir com intensidade e fúria tem sido uma verborragia insana e retrógrada, que de alguma forma se sente respaldada a se manifestar.

Um piscar de olhos e se verifica com facilidade que palavras nem sempre coadunam com as ações. Teoria nem sempre traduz a prática. Nem sempre a maioria está certa. Nem sempre a minoria carrega o erro. Há uma linha imutável que não pode jamais ser esquecida nas análises da vida. Um relativismo que desconstrói o senso absoluto das certezas e dos pensamentos de maneira alheia as vontades e desejos humanos. Por isso é tão necessário REFLETIR.

Não questiono a singularidade que permeia as subjetividades humanas. Cada um na sua individualidade está constituído da sua identidade, dos seus valores, dos seus princípios; muitos deles, certamente, advindos das ondas de propagação do inconsciente coletivo ao longo dos séculos de convivência social. O ponto nevrálgico de tudo isso está no modo como trazer ao campo da coexistência as diferenças de maneira pacífica e respeitosa, ou seja, sem atear fogo e transformar a sociedade em um campo de guerra minado e retalhado pela incompreensão e violência.

E dentre milhares de pautas nesse contexto, o racismo tem ganhado destaque importante pelos absurdos e perversidades com os quais baseia a sua estruturação no âmbito social. Mas, o que pode desencadear uma ideologia assim, tão permissiva a construção de abismos, de hierarquias privilegiadas, de desigualdade de direitos, quando só há uma única raça para os seres humanos? A tentativa pode vir de muitos caminhos, muitas frentes; mas, nada capaz de efetivamente satisfazer com uma resposta a essa indagação.

Particularmente penso que pessoas dentro desse perfil gostariam que suas bolhas existenciais pudessem realmente se estender além do seu microcosmo, para que não precisassem justificar ou tentar explicar a sua rejeição, o seu descaso, o seu desprezo profundo a todos aqueles a quem considera inferiores. Como isso não é possível, elas se exasperam sob as mais descompensadas manifestações racistas que se possa imaginar. O que significa que estão a plantar sementes de ódio que irão germinar e retroalimentar esse processo socialmente destrutivo e antiproducente ao longo do tempo 1.

Ocorre que ninguém consegue viver ensimesmado no seu próprio núcleo de convivência. Para que a dinâmica da vida seja possível é fundamental a participação de todas as pessoas, inclusive aquelas a quem expressam seu racismo. Ou vai dizer que se precisar de uma doação de sangue, ou de um transplante, ou de um atendimento de emergência irá recusar em razão da pessoa que está na outra ponta da história? Isso significa que a dignidade de todos é importante e merece ser respeitada. A igualdade e a equidade, portanto, são fundamentais nesse processo de jornada humanitária a fim de que a cooperação mútua possa alcançar seus objetivos e se firmar como princípio social e identitário básicos.

Afinal de contas, a todo instante o mundo gira e nos impõe uma interdependência; sobretudo, em questões cruciais que não permitem certas exigências. Basta pensar nas catástrofes naturais que vêm ocorrendo cada vez com mais frequência, como foi o tsunami no Oceano Índico, em 2004 2. Diante do inesperado avassalador, a sobrevivência mostrou-se como a única prioridade e as ajudas foram bem-vindas sem distinção.

No entanto, um vintém a mais no bolso para muita gente se considerar “a última bolacha do pacote”. Pensamento pequeno, pobre e inútil. Primeiro porque a vida tem validade e não avisa no rótulo quando expira. Segundo porque as divisões, as linhas fronteiriças, as apartações sociais, tudo isso nos fragiliza coletivamente. Por mais que alguns tentem omitir a sua inacabada existência humana por meio de repertórios de autoafirmação sem sentido, o ser humano será sempre o ser humano. Com sonhos, desejos, frustrações, necessidades, carências, direitos, deveres,...

Nesse contexto, portanto, o lado prático da vida é como explica a Parábola do Porco-Espinho 3. Presos e/ou perdidos entre tantas divagações e ilusões absurdamente irrelevantes e miseráveis de significância... e daí? Na hora do aperto, quando as situações se extremam ao limite, os discursos se esvaem como fumaça enquanto as ações mudam de direção e de sentido. Por isso o racismo não passa da página dois do manual de uns e outros, materializado em uma falácia confortável; mas, não sustentável. Caso não queira cair em tamanho descrédito ideológico, por conta de tantos motivos óbvios abaixo do próprio nariz, talvez, seja melhor REFLETIR antes de sair se manifestando por aí.  



1 Trailer oficial do filme “O ódio que você semeia” (2018) - https://www.youtube.com/watch?v=5Ush5KHb23c

2 Trailer oficial do filme “O impossível” (2012). Ele é baseado na experiência de María Belón e sua família que sobreviveu ao Sismo do Índico de 2004 - https://www.youtube.com/watch?v=N6W5jbWq_h0

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