A Paz e a Fome

 

A Paz e a Fome

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Em um mundo tão refratário a empatia, a notícia de que o Prêmio Nobel da Paz de 2020 foi atribuído ao Programa Mundial de Alimentos (PMA) da Organização das Nações Unidas (ONU). Isso significa que a fome volta a ter destaque e importância fundamental nas discussões internacionais; sobretudo, no campo da cooperação multilateral. E se em 2019, já havia 135 milhões de pessoas em condição de profunda insegurança alimentar no planeta, agora diante da Pandemia do COVID-19 as expectativas são de que esses números tendam a se agravar; por isso é preciso pensar e falar a respeito.

Ao contrário do que muita gente pensa por aí, a fome e a miséria não são escolhas. Seres humanos em todo o mundo são vitimas das conjunturas sócio-político e econômicas que lhes impingem a indignidade como caminho de sobrevivência. E não bastasse a barriga roncando desconfortável o seu vazio, a cabeça doendo e provocando um tipo esquisito de confusão mental, esse corpo que se desenvolve frágil, esquálido, se torna alvo da baixa imunidade e não consegue lutar contra as investidas de inúmeras doenças.

Portanto, a insegurança alimentar exerce uma paralisia social de dimensões catastróficas. Na medida em que o ser humano encontra-se no pior estágio da sua vulnerabilidade existencial. A fome e a miséria não matam só o corpo, lenta e gradativamente; antes disso, elas consomem a identidade, a subjetividade, a cidadania e lançam esse ser destruído as margens da invisibilização, da insignificância, da mendicância, do assistencialismo oportunista.

A comida no prato é o primeiro degrau de ascensão do ser cidadão. Se ele é negado, todos os demais direitos sociais previstos constitucionalmente também o são, ou seja, educação, saúde, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência. Então, na medida em que a sociedade ignora a existência de seres humanos vivendo sob essa condição, ela compactua com a construção de todos os abismos de desigualdade que impedem a sociedade ser compreendida holisticamente em toda a sua diversidade.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os dados da Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio (PNAD) Contínua de 2019, apontam que “o grupo de pessoas em pobreza extrema no Brasil, que inclui os que vivem com menos de 1,9 dólar por dia, ganhou cerca de 170 mil novos integrantes em 2019 e encerrou o ano passado com 13,8 milhões de pessoas, o equivalente a 6,7% da população do país”; portanto, este “é o quinto ano seguido no qual o número de brasileiros na miséria cresce” 1. Não se esquecendo de que esse era o panorama Pré-Pandemia.

A questão é que todas essas informações possibilitam emergir, com mais clareza, as verdades ocultas e indigestas que circundam a sociedade. As respostas práticas e objetivas que a insegurança alimentar aguarda das autoridades competentes vai muito além do simplismo da oferta e disponibilização de alimentos à população carente. Afinal de contas, a fome e a miséria não podem ser transformadas em uma indústria de benesses e contrapartidas político-eleitoreiras; como se viam nos séculos passados com o chamado “voto de cabresto”.

A fome e a miséria precisam ser combatidas sim, efetivamente; mas, a partir de ações que visem desconstruir as fronteiras perenes de desigualdade e oportunizar a essas pessoas desassistidas a sua integração e participação cidadã na sociedade. Elas não podem passar o resto de suas breves vidas recebendo doações de alimentos, cestas básicas, enquanto vivem a ultrajante realidade da indigência humana. Sobrevivendo a ambientes totalmente insalubres e não urbanizados. Impossibilitadas do seu acesso à saúde, educação e trabalho pela total carência de documentos que atestem a sua existência social para o país.

Não se alcança a paz sem a dignidade, sem o senso humanitário. O que o Prêmio Nobel da Paz de 2020 faz, então, é retirar dos olhos de bilhões de indivíduos as vendas, as quais têm cegado e possibilitado a promoção do individualismo, da ganância, da cobiça, da avareza, do desperdício, para que o mundo possa resgatar em todos os sentidos a compreensão “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”; por isso, “São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” 2.

Por isso, para a Organização das Nações Unidas (ONU), em seus 17 Objetivos de Desenvolvimento sustentável estão contemplados em sequência de prioridade, a erradicação da pobreza em todas as formas e em todos os lugares (Objetivo 1) e a erradicação da fome, alcançando a segurança alimentar, a melhora nutricional e a promoção da agricultura sustentável (Objetivo 2) 3.  A entidade entende que sem o desenvolvimento e atenção humana básica não há nenhum outro desenvolvimento capaz de prosperar.  

Assim, aproveitemos a celebração desse prêmio para pensar: “Aqui, na Terra, a fome continua, / A miséria, o luto, e outra vez a fome. / Acendemos cigarros em fogos de napalme / E dizemos amor sem saber o que seja. / Mas fizemos de ti a prova da riqueza, / E também da pobreza, e da fome outra vez. / E pusemos em ti sei lá bem que desejo / De mais alto que nós, e melhor e mais puro. / No jornal, de olhos tensos, soletramos / As vertigens do espaço e maravilhas: / Oceanos salgados que circundam / Ilhas mortas de sede, onde não chove. / Mas o mundo, astronauta, é boa mesa / Onde come, brincando, só a fome, / Só a fome, astronauta, só a fome, / E são brinquedos as bombas de napalme.” (José Saramago – Fala do velho do restelo ao astronauta) 4.