Fazendo escambo com a simpatia

 

Fazendo escambo com a simpatia

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Não é de hoje que aponto em alguns textos o sentimento colonialista que persiste nas relações sociais brasileiras. E isso se faz bastante claro quando paramos para observar o nível de distorção existente na compreensão do cidadão sobre a governança nacional. Há uma imensa dificuldade de entender que as ações realizadas pelos representantes eleitos pela população não são benesses ou caridade; mas, obrigações constitucionais assumidas pós-resultado do pleito eleitoral em que se consagraram vitoriosos. Então, não há motivo para “beijar-lhes as mãos”. Não estão fazendo mais do que seu dever.

O pior é que, além de reforçar um movimento de mendicância subserviente, essa incompreensão ofusca a percepção real dos fatos. Ela manipula ações esparsas e pontuais, transformando-as em feitos de enorme repercussão, os quais encobrem a dimensão das carências e das mazelas recorrentes e persistentes na sociedade e que seguem postergadas ad aeternum.

O que significa a construção de um gigantesco silêncio que cala a inexistência de um planejamento sistemático e contemplativo das prioridades sociais, a partir de movimentos estruturados em meras eventualidades que orbitam os interesses politiqueiros. Pequenas bondades aspergidas sob o sofrimento dos mais vulneráveis, que aliviam momentaneamente; mas, não alcançam a cura ou a solução por não se tratarem de atitudes efetivamente comprometidas com a transformação positiva da realidade social.

E é nesse ponto que me angustia a reflexão sobre como será o amanhã, pensando que daqui a três meses já será 2021. Afinal, diante do panorama atual permeado de tamanhas incertezas, muitas delas decorrentes de todos os impactos desse desconhecido processo Pandêmico, parece temerário depositar uma esperança cega e absoluta. A vida nunca foi tão intensa no seu relativismo, ao ponto de as mudanças estarem se desenvolvendo sob a batuta de um maestro invisível.

Muitos chegarão ao próximo ano minados por uma exaustão física e moral sem precedentes. Reflexos das milhares perdas humanas computadas entre conhecidos e desconhecidos, sob um luto amargo, preso no fundo da alma.  Reflexos das perdas econômicas que reduziram os recursos, ceifaram os empregos, baixaram as portas dos meios de produção e comércio, fazendo emergir os diversos desafios que só as grandes crises sociais sabem imputar. No entanto, esses reflexos ainda não conseguiram elevar o pensamento gestor a pensar o agora com vistas a esse amanhã tão próximo.

Antes que 2021 aporte, o que se ouve são murmúrios de medidas socioeconômicas baseadas em uma ótica muito distante e desalinhada de quaisquer expectativas de redenção em meio caos. Como se não conseguissem perceber o abismo que se desenha logo adiante. Como se houvesse botes e coletes salva-vidas para todos os presentes nessa nau. Como se em um passe de mágica o país pudesse ressurgir das cinzas e alçar um voo de enorme exuberância.

Infelizmente, a verdade é que as pequenas bondades aspergidas até aqui não passaram de um anteparo frágil diante da robustez da crise que se instalou entre nós. O que essas medidas representaram foi, tão somente, uma resposta à urgência, um mecanismo para mitigar a gravidade dos desdobramentos; não uma solução efetiva. Portanto, elas não poderão fazer muito mais quando 2021 chegar.  

Enquanto o restante do mundo se organiza de algum modo para os próximos acontecimentos, o Brasil reluta em abrir mão de planos que naufragaram durante a Pandemia. Planos que se fiaram em uma realidade que não existe mais e que precisam dar vazão a outros capazes de atender as demandas desse novo contexto. Algo que não precisa ser comprovado no rigor estatístico, pois já é sentido por cada família dentro de casa, ou na fila do supermercado, ou nas portas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), ou nas agências da Caixa Econômica Federal.  

A questão é que, por enquanto, milhares de pessoas ainda depositam alguma esperança, por mínima que seja, de que o amanhã está sendo estruturado pelas autoridades competentes. Reminiscências de um certo paternalismo monárquico que aqui existiu. Mas, quando perceberem que permaneceram negligenciadas, abandonadas a própria sorte, poderá ser tarde demais para dar a volta por cima, para lutar pela sua dignidade. Cada uma delas conviverá, então, com os seus próprios dramas individuais, enquanto o país arrastará as correntes do atraso e do obscurantismo.

Dessa vez a crise não é uma exclusividade nossa. O mundo vive essa crise. O problema é que exercíamos a autoralidade de uma crise e agora ela se soma a outra muito mais expressiva. Como dizia o mais importante teórico do liberalismo econômico, Adam Smith, “A ambição universal do homem é colher o que nunca plantou”; então, isso implica que “é preciso sentir a necessidade da experiência, da observação, ou seja, a necessidade de sair de nós próprios para aceder à escola das coisas, se as queremos conhecer e compreender” (Émile Durkheim).

Parece que o velho hábito colonial de fazer escambo com a simpatia está com os dias contados. Porque as lutas inglórias que o cotidiano teima em impingir desgastam em demasia o bom ânimo, enquanto esgarçam a credulidade a fiapos. Desse modo, não restará alternativa a sociedade senão permanecer de olhos bem abertos em quem realmente terá habilidade e competência para desatar os nós de marinheiro que a vida venha teimar em fazer.

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