Preste atenção!
Preste
atenção!
Por
Alessandra Leles Rocha
Ao contrário do que uma grande
maioria da população imagina, as ações de preconceito, marginalização, intolerância,
desrespeito e violência fazem dos seres humanos “minorias” a cada segundo. Está na obrigatoriedade do uso de
uniformes pelas empregadas domésticas e babás. Está na presença de elevadores
sociais e de serviço em edifícios comerciais e domiciliares. Está nas
edificações que não atendem as normas de acessibilidade para deficientes e
idosos. Está na distinção da qualidade do ensino em todos os níveis entre os
sistemas público e privado. Está... em inúmeros momentos da vida cotidiana que
passam conscientemente invisíveis entre nós.
Sim, a sociedade legitima essas
narrativas, esses discursos, por meio da banalização ou trivialização dessas
práticas. De modo que elas criam um “consciente
coletivo” que autoriza todas as fronteiras da desigualdade social,
favorecendo um universo amplo de “minorias”
desassistidas e, portanto, destituídas de algum modo dos seus direitos
constitucionais mais elementares.
São milhares de pessoas que
transitam dentro da sociedade impossibilitadas de caber na estrutura social. Como
no filme “Coração de Cavaleiro” (A
Knight’s Tale) 1, de
2001, elas são “medidas, pesadas,
avaliadas e consideradas insuficientes” com uma naturalidade aviltante. Coisas de um mundo que persiste em tratar
seres humanos sob a insígnia do “vale
quanto pesa”.
Por esse infeliz modus operandi centenas de milhares de
seres humanos são deixados à margem. Suas competências, habilidades, talentos,
criatividade, também. O que significa que a sociedade se encolhe em razão do obscurantismo
de suas próprias escolhas e atitudes. Há uma perda descomunal nesse processo;
mas, por mais incrível que possa parecer, insuficiente para esconder a presença
maciça das “minorias” que só fazem
proliferar. É; sua presença é marcada pelas estatísticas. Números que se
reafirmam discursivamente em palavras de ódio e desprezo, que teimam em
desqualificar... a vida humana.
Quando reflito sobre essas
questões, o espanto que me arrebata é justamente perceber a total incapacidade que a sociedade
tem em enxergar pessoas simplesmente como seres humanos. São os rótulos e os estereótipos
que impedem a percepção clara da humanidade que reside em cada indivíduo e faz
desse conjunto uma única raça, a humana. Que vive e morre sem aviso prévio. Que
chega e vai embora sem levar um quinhão, que seja, de material. Que precisa de
ar, de água, de alimento e de abrigo se quiser sobreviver. Nada mais do que seres vulneráveis ao imponderável da vida.
No entanto, fecham-se olhos,
tapam-se os ouvidos e permitem que as bocas vociferem impiedosas, os insultos
que transformam gente em “minoria”,
em coisa menor, vulgar, desprezível. Como se o mundo pudesse ser um lugar melhor
sem essas pessoas. Mas, será mesmo? Porque de um jeito ou de outro, aqui e ali,
a dependência das “minorias” se faz visível.
Sem constrangimento ou drama de consciência
fazem delas alvo de sua exploração, a fim de atenderem as suas regalias e privilégios.
Pelo voto. Pelos impostos cobrados.
Pelas atividades profissionais que não se adequam ao status quo de uns e outros. Enfim... Ultrapassam quaisquer limites éticos e morais
para tal, considerando legitimadas as suas ações pelo silêncio que paira
conivente na amplidão social.
É assim que a roda da vida tem girado,
mas não transformado. Porque essas práticas insistem em silenciar o lugar de
fala das “minorias”. Entretanto,
chega a um ponto que todos, de um modo de outro, tornam-se “minorias” por razões diversas, fazendo com que o silêncio seja,
então, geral. Por isso, fazem vista grossa. Fazem ouvidos de mercador. Para que
nenhuma voz ouse romper a “paz”
instituída. Afinal, ruídos são sempre desconfortantes e embaraçosos.
Mas, eis que a Pandemia chegou
promovendo um verdadeiro pandemônio. Bradando aos quatro cantos a sua fúria.
Nivelando sem quaisquer cerimônias “minorias”
e “não minorias” e brincando de
roleta-russa com elas. Quem morre? Quem vive? Quem sobrevive? Só o COVID-19
dirá. Um imenso telhado de vidro brilha sobre as cabeças e desconstrói as
certezas, as convicções, os direitos.
Do mundo pós-pandemia, talvez,
emerja uma imensa “maioria” em busca
de uma nova identidade, de novos valores, de novos princípios, de novas
perspectivas, de uma nova consciência e práxis humanitária. Mas, por enquanto, o máximo
que se pode afirmar é que a manutenção das desigualdades e a reafirmação das “minorias” não cabem mais no contexto. O
desgaste oriundo desse pensamento só aponta para o desapego real e imediato;
porque já sobram fundamentações para se perceber que entre nós só existiram até
aqui “pseudodiferenças” e nada mais. Afinal, todas as vidas importam.