Entre a vida e a morte
Entre
a vida e a morte
Por
Alessandra Leles Rocha
Entre a vida e a morte só
cabe um suspiro. Nada é tão certo e tão imprevisível quanto à morte. Mas isso
não faz dela menos importante e, nem tampouco, trivial para a raça humana.
Afinal, ela sempre estende a dor além da própria vítima, em um luto que se
decompõe entre tantos ao redor.
E no mundo enlutado não há
razões para pensar que a vida continua como se nada tivesse acontecido.
Aconteceu. Uma perda imensa. Uma perda que leva consigo uma parte do amor, da
amizade, do companheirismo, do cotidiano, das alegrias, das esperanças, de
inúmeros momentos acontecidos e por acontecer. Uma perda que tempo nenhum é
capaz de aplacar.
Seja porque motivo for que
a morte nos arrebate é sempre ela na sua fria e discreta brutalidade. Porque
dizer adeus é quase impossível, quando se quer tão bem ao outro. Então, não
importa se é o COVID-19, a Tuberculose, o atropelamento, a bala perdida,... não
importa; pois, o relógio não consegue retroceder antes do fim.
Logo agora que a
humanidade está impedida do afeto mais próximo, daquele abraço gostoso, daquele
aconchego único, que nunca o ser humano se dá conta de que pode ser o último;
pois, raras são às vezes em que a morte se anuncia. Foi assim, no de repente,
que aconteceu em Hiroshima e Nagasaki há 75 anos, no Vietnã, na Síria, em
Mariana, em Brumadinho, em Beirute, em Calicute,... O imponderável gritou em
silêncio e emudeceu a todos na perplexidade da dor e do desespero.
É; nunca a morte esteve
tão confortável entre nós! Nesse momento, travestida pela invisibilidade do
COVID-19, não há uma gota de constrangimento no seu transitar
entre os viventes. A cada instante ela tira alguém para dançar a valsa
pandêmica. E quantos pares ela fez até aqui? Quase 100 mil em território
nacional. No mundo, mais de 700 mil. Isso em números certamente subnotificados
e sem considerar todas as outras faces que a morte usa para capturar suas
vítimas.
O mundo que antes parecia
ameaçado pelo envelhecimento da sua população revela-se, agora, muito mais
minguado pela morte. Sim, porque ela se comporta acima das convenções, não
escolhe raça, credo, etnia, gênero, idade, status ou escolaridade. Um pouco de
tudo. Um muito de todos. E a perspectiva desenvolvimentista, progressista, tecnológica,
consumista vai ficando em xeque-mate frente as suas investidas intempestivas,
porque ninguém é páreo para a morte, ou é?!
Nesse jogo só ela dá as
cartas. Ela faz as regras. Ela é a protagonista, enquanto o mundo é mero
coadjuvante. E ninguém sabe o quanto de mau humor ela está no dia, para estimar
o impacto das perdas. Ela é o inimigo sem rosto. O agente secreto infiltrado
entre nós. A espreita da próxima vítima, sem que se possa fazer nada a
respeito.
Cada dia nesse mundo é uma
marca de sobrevivência. Um dia a mais que a morte nos concedeu; não, a vida. Ao
contrário do que alguns ainda insistem em afirmar, estamos mais e mais
distantes de nossos pequenos poderes. Ela está nos provando com mais veemência
a extensão da nossa mortalidade. O quão somos insignificantes e falíveis apesar
de todos os pesares. Por mais que tentem enaltecer as diferenças a nossa
humanidade nos iguala. Somos de carne e osso. Somos vulneráveis diante do que
conhecemos; mas, sobretudo, daquilo que desconhecemos.
A morte, portanto, nos
impõe reflexões profundas. As prioridades são ressignificadas. Os poderes são
questionados. Os limites contestados. Os valores reavaliados. ... Enfim, nada
permanece imutável diante da morte. Ela chega revolvendo os terrenos humanos a
uma profundidade inimaginada, que não há estrutura que permaneça de pé. As
mortes traduzem rupturas para realinhamento de novas ordens e paradigmas. Elas
não são pontos finais; mas, reticências para existências que precisam
prosseguir a partir de um processo de reconstrução.
A morte não é o contrário
da vida. Ela é parceira da vida, sua grande mentora. A gente já nasce sabendo
que um dia tudo vai acabar; por isso, aprende a evitar flertar com a morte
antes da hora, mantendo certos cuidados, certos limites, certos caminhos. Até
que um dia, ela chega sem pedir licença. Retira as nossas asas. Envolve-nos em
nossos casulos. E faz da nossa metamorfose parte da transformação do mundo.
Assim, ainda que a vida
tenha sido desperdiçada por muitos em vão, a morte chega e lhes oferece a
dignidade de fazer algo de bom, de colaborar de alguma forma com o mundo, ao
menos uma vez, por meio dos ensinamentos que sua própria partida pode
oferecer.