De olhos abertos...
De
olhos abertos...
Por
Alessandra Leles Rocha
Observando a realidade
atual mais me encanto com a visionária atemporalidade de José Saramago, em seu “Ensaio
sobre a Cegueira” 1. A sociedade
pós-moderna na sua tendenciosa e oportunista seletividade da visão se constitui
sobre escombros daquilo que prefere, ou não, enxergar. Por isso, os reflexos históricos
são tão imprescindíveis na análise dos movimentos de alienação e entorpecimento
que insistem em ditar as diretrizes do hoje sem preocupação com o amanhã.
Tudo está diante dos olhos,
mas a grande maioria parece não ver. A cegueira que se instituiu na sociedade pode
ser atribuída tanto a um comodismo cronificado quanto a uma insistência em
garantir a qualquer custo à manutenção em uma chamada zona de conforto. De
algum modo, por mais estranho e torto que possa parecer, algumas pessoas resistem
aos apelos das regalias e dos privilégios para aderirem à quietude inerte
favorecida por essa “cegueira”.
No entanto, isso tem um
preço. O “não enxergar” cobra
aceitar o que vier, tornando os indivíduos meros expectadores dos
acontecimentos. A cegueira retira o protagonismo da sociedade e a lança a uma
condição de subserviência da história, especialmente por meio do imobilismo. Ora,
a visão limitada constrange o trânsito e o deslocamento livre, pelo medo de não
saber exatamente como se situar dentro do contexto.
Nesse sentido, é público e notório
que os espaços sociais já estão definidos e não há interesse por parte daqueles
que estão no “topo” uma mudança
nesse panorama. Para eles, o “topo”,
tudo está como deve ser, como sempre foi, funcionando a contento de seus
interesses.
Isso significa que quaisquer
anormalidades existentes já foram, de algum modo, tornadas normais. Há um
discurso em vigência que as legitima e, até quem sabe, legaliza; de modo que,
quaisquer traços de desigualdade tornam-se, portanto, mais acentuados e
reafirmados. E é exatamente esse processo que vem se arrastando ao longo dos
séculos. Quaisquer tentativas de ruptura ou de fazer emergir um novo realinhamento
social é brutalmente rechaçado e condenado as mais diversas iniciativas de
banimento.
O mais grave, então, é o
fato de que esse entendimento em torno da “cegueira”
não é acessível a grande maioria dos “cegos”.
O papel social atribuído a grande base da pirâmide foi providencialmente
estruturado a fim de afastá-la de enxergar além do que seria “necessário”; portanto, ela nem se dá
conta de que está cega. Esse contingente populacional não foi preparado para
fazer de seus olhos instrumentos de leitura das entrelinhas do cotidiano e,
assim, são mantidos distantes da efervescência “perigosa” do mundo.
No fim das contas essas
pessoas em nome de uma pseudo sobrevivência se abstêm de pudores em relação aos
seus valores éticos e morais, contentando-se a viver uma realidade de migalhas.
Por isso, elas tendem a “não enxergar o outro”, a não
dimensionar as suas atitudes no espaço coletivo da vida. É assim que os cancros
sociais se perpetuam, mazelas como a corrupção, o “voto de cabresto” e o racismo institucionalizado, por exemplo.
De certo modo, eles sabem que não dispõem de
opções para a ascensão, estão fadados a permanecer a um passo atrás, um degrau
abaixo, um elevador de serviços, enfim. Daí, se atiram inadvertidamente à subserviência
idólatra. Ao conluio marginal. À ostentação vulgar em nome da autoafirmação. ... Mas, seja por qual justificativa for, a verdade
é que nada muda os fatos, ou seja, elas têm posição cativa em servir ao “topo”. Seu papel é garantir a
estabilidade do topo da pirâmide, ainda que de maneiras distintas, segundo as
perspectivas do momento.
A grande questão é que estar
cego é diferente de ser cego. A cegueira parece aflorar uma autoindulgência exacerbada
no ser humano, de modo que o incapacita de reagir e contrariar a si mesmo, em
nome do movimento natural de sua própria evolução. O ser humano é um ser
incompleto, é um ser que espera vir a ser, então, ainda que os discursos tentem
criar uma lógica perversa no inconsciente coletivo, a transformação permanece a
espera. Enxergar não é mera opção, é escolha pautada na dignidade, na
humanidade que ultrapassa as fronteiras do “eu”
em respeito ao “nós”. Afinal, “o mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos
acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos” (José Saramago –
Ensaio sobre a Cegueira).