A cultura dos senões
A cultura dos senões
Por Alessandra Leles Rocha
Ao
que tudo indica são tempos de cultivo da cultura dos senões. O péssimo hábito da
análise rasa e periférica do mundo subverte a importância das coisas em nome de
detalhes irrelevantes ou nada importantes ao ponto em questão. Apenas e tão
somente, um jeito estranho e maquiavélico de manifestar o desconforto de viver
em um mundo que teima em ser diferente de mim, das minhas crenças, dos meus
valores, da minha idealização patológica. De modo que tudo vira pretexto para
ofender, julgar, desqualificar, banir...
E
isso é um problema verdadeiramente sério porque esbarra diretamente na
construção identitária da sociedade, na medida em que fortalece o
estabelecimento de um cerceamento da liberdade de ser. Os indivíduos tornam-se
subjugados aos moldes preestabelecidos pelo sistema vigente e tudo o que
desenvolvem no seu espectro de atividades precisa obedecer a esses critérios. Se
assim não o fizerem são sumariamente condenados aos vieses da marginalização,
da inadequação, do não pertencimento.
Algo
fácil de perceber no campo da identidade cultural. O nível de cobrança em
relação às expressões artístico-culturais é intensa e sempre pautada em uma
análise muito mais pessoal do artista do que da própria obra. Muitas vezes não
tendo o quê ou como questionar técnica ou metodologicamente um dado trabalho,
os senões são atribuídos ao autor por conta de aspectos de ordem totalmente
privada, tais como, gênero, religião, orientação sexual, ideologia política
etc.
Então,
de repente, a cultura começa a ser guardada sob sete chaves nos grandes depósitos
do conservadorismo arcaico, a mercê das poeiras e teias de aranhas que emergem dos
discursos e decisões arbitrárias de uns e outros. Ou,
quem sabe, lançada ao ardor das línguas inflamadas por um ódio nutrido pela
incapacidade de encontrar a liberdade no exercício da própria existência; de
modo que, a inveja se exacerba descontrolada no ato da negação censora.
Ah,
porque ser e, ainda, desfrutar a liberdade é só para os fortes (de alma). A
grande maioria sucumbe aos primeiros impropérios vociferados, resignando-se a
uma obediência longa e sofrida. Enquanto o pequeno grupo dos seletos
conscientes de si enche o mundo com a sua criatividade expressa na genialidade que
extravasa das linguagens verbais e não verbais. Sua pretensão nunca foi incomodar
ninguém; mas, apenas, caber no pedacinho de chão que lhe reserva essa vida.
É
na doença dos outros que reside o problema. O modo obtuso e desalinhado como se
estabelecem no mundo e sucumbem ao controle que lhes recai sobre os ombros, como
fardo pesado. São seus olhos que registram a distorção impregnada nas suas
mentes. São seus valores que registram a maldade, a falta de decoro, os
comportamentos reprováveis. São seus discursos que se traem na manifestação
preconceituosa, intolerante, desumana e inconsequente.
No
entanto, é bom não esquecer de que em termos de valores e princípios, por trás
da cortina, nos bastidores do cotidiano, essa rigidez é comumente
flexibilizada. No esquema do “faça o que
eu falo, mas não faça o que eu faço”, a hipocrisia dá pequenas asas ao
conservadorismo de fachada. A inquisição sobre o “outro” que não teme a
exposição é deleite para o inquisidor, que jamais se colocaria na posição de receber
as mesmas facas e flechas; por isso, ele age nas sombras, em surdina, de vez em
quando, só para aplacar por um segundo o seu sonho de liberdade.
Na
cultura dos senões o pudor é sempre seletivo e, portanto, tão repulsivo. Mas,
na atual conjuntura pós-moderna, quanto mais os senões são impostos mais se
estabelecem questionamentos acerca deles, o que os faz deteriorar com mais agilidade essa capacidade nociva.
Ora,
um mundo que chegou ao século XXI movido pelas engrenagens tecnológicas e científicas
é um mundo que está rendido a permanecer em expansão. Isso significa uma disposição
intensa a ressignificação de ideias, de conceitos, de pensamentos, que não
permite sobreviver distante do questionamento, da análise crítica e reflexiva.
Portanto,
é como escreveu Mario Vargas Llosa 1, “a cultura pode e deve ser, também,
experimentação, é claro, desde que as novas técnicas e formas introduzidas pela
obra ampliem o horizonte da experiência da vida, revelando seus segredos mais
ocultos ou expondo-nos a valores estéticos inéditos que revolucionem nossa
sensibilidade e nos deem uma visão mais sutil e nova desse abismo sem fundo que
é a condição humana”.
1 LLOSA, M.
V. A civilização do espetáculo: Uma
radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
207p.