Na melodia do Réquiem


Na melodia do Réquiem




Por Alessandra Leles Rocha




Dessa vez não teve jeito, a Pandemia escancarou a desigualdade até a última fronteira da sociedade. Dessa vez não deu para esconder que a falta de saneamento, de urbanização, de dignidade cidadã tornam mais vulneráveis a parcela menos favorecida. Como, também, não deu para ocultar a soberba infeliz daqueles que se sentem superiores e absolutos. Nem tampouco disfarçar o seu escárnio, o seu descaso explícito com a empatia, a sua indiferença com tudo o que ultrapasse as fronteiras do seu “pseudo poder”.
As imagens da noite carioca, pós-flexibilização Pandêmica, quando bares e restaurantes puderam funcionar dentro de parâmetros de higiene e de comportamento estabelecidos pelo poder público municipal, são apenas uma gota nesse oceano. Uma gota que reafirma o cruel, a perversidade que habita o ser humano; mas, uma gota dentre milhares de outras espalhadas país afora, dentro de uma questão que se divide entre duas reflexões e cuja origem é a mesma, o Colonialismo.
A sociedade padece dos mesmos males e impactos do COVID-19; no entanto, sob perspectivas distintas.  Além dos desafios da sua realidade cotidiana, totalmente contrária às demandas de segurança sanitária, um grande contingente populacional pertence ao rol da informalidade e depende da renda diária das suas atividades. Portanto, essas pessoas não têm escolha e são obrigadas a sair às ruas, em nome do sustento e da sobrevivência. São camelôs, diaristas, ajudantes da construção civil, entregadores etc.
E já que elas foram assim expostas, todo o discurso do isolamento e/ou distanciamento social vai perdendo o sentido vai se esfacelando em uma força brutalmente contrária ao espírito fraterno, coletivo, cidadão. O modo como a sociedade lhes enxerga ficou muito claro; na medida em que, para elas a sobrevivência foi indissociada do trabalho. Elas são consideradas apenas as forças motrizes da economia ultraliberal; o que limita toda a extensão da sua existência, da sua dignidade e da sua cidadania.
Enquanto isso, nas parcelas oriundas das “Casas Grandes” contemporâneas as razões são outras. Primeiro, porque eles não estão acostumados a seguir e cumprir regras; mas, a fazê-las. Então é muito difícil “se sujeitar”! Segundo, porque a sua existência em todas as formas e sentidos depende da riqueza patrimonial que têm disponíveis. Suas fontes de recursos momentaneamente paralisadas colocam em risco essa realidade de luxo e ostentação. Por fim, eles estão sempre na posição de serem servidos; mas, jamais servir.
Em seu inconsciente coletivo habitam máximas perigosíssimas. Sentem-se tão diferenciados, tão “bem nascidos”, que a sensação de imortalidade preenche cada espaço do seu corpo ao ponto de se tornarem invencíveis, até diante da morte. Eles são narcísicos, egoístas, superficiais e vazios; por isso se valem do autoritarismo, do deboche, da arrogância para reluzir seu “pequeno poder” sem se preocupar com as consequências, com os desdobramentos, com absolutamente nada.
No entanto, como são os dois lados da mesma moeda, a “Casa Grande” e a “Senzala” pós-modernas estão localizadas em um mesmo aglomerado urbano, denominado cidade. E o vírus não conhece fronteiras. Não conhece raças. Não conhece status. Não conhece colonialismo, nem pós-colonialismo. Não conhece o poder das urnas, nem os poderes paralelos.
Por isso, ele vai do Leblon à Baixada sem pestanejar. Ele pega o trem na Central do Brasil. Ele vai de carro ao shopping. Ele sob e desce de elevador nos condomínios luxuosos da Zona Sul. Ele frequenta Copacabana. ... Ele se diverte. Ele se aglomera. Ele ri. Ele chora. Enfim, ele pode adoecer... pode matar.  
Na noite carioca ou de quaisquer outros lugares no Brasil, então, já é possível se ouvir o Réquiem. Composto por seus mais “nobres” compositores, talvez, nem saibam o que isso significa. Mas, as suas atitudes mesquinhas e vulgares são, na verdade, melodias fúnebres de um rito que vem se traduzindo por meio das estatísticas dos jornais dos últimos meses.
A questão é saber quantos mais terão que encontrar esse “descanso eterno” entoado nas aglomerações? Quanto mais se banaliza a morte, mais se vulgariza a liturgia e o simbolismo do Réquiem. Afinal de contas, que o vírus é letal ninguém duvida; mas, que muitas vidas poderiam estar sendo salvas, disso também não. Nesse contexto, ainda que as amargas raízes coloniais tragam explicação para muitos comportamentos sociais contemporâneos, elas não justificam.
Aliás, porque nada justifica tudo isso, visto que o ser humano dispõe de livre-arbítrio, de capacidade racional, de sentimentos para ponderar julgar e agir; sem demandar, portanto, tutela ou ingerência de A, B ou C. O que está diante dos olhos, nesse momento, é uma questão de valores, de princípios que cada um carrega dentro de si.
Todas as vidas importam. Portanto, mais do que uma questão de morte essa é uma questão de vida; pois, depende única e exclusivamente do controle humano dessa situação. Como disse José Saramago, “Eu não sou um exemplo do que é viver neste mundo. Sou um privilegiado. Não posso estar contente. O mundo é o inferno. Não vale a pena ameaçarem-nos com outro inferno porque já estamos nele. A questão é saber como é que saímos dele” 1.


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