E amanhã é 14 de julho...


E amanhã é 14 de julho...




Por Alessandra Leles Rocha




É fácil dizer que o brasileiro é destemido para encobrir todo o infortúnio de mazelas, as quais precisa enfrentar para sobreviver. Como é fácil dizer, também, que o brasileiro tem saúde de ferro, é forte e resistente, para encobrir as mesmas mazelas. Enfim, manifestações nonsense, as quais não passam de mera perspectiva superficial daquilo que realmente é fato.
Lançar sobre a população um rol de adjetivos bonitos não altera em nada a realidade. Palavras aspergidas como tempero não têm a capacidade de trazer a vida para outro patamar do status quo nacional. Ainda mais em razão dos últimos acontecimentos sintetizados pela Pandemia do COVID-19.
Era de se esperar que diante da morte iminente, a vida fosse elevada imediatamente ao nível de prioridade. E quando falo em vida, me refiro a todas as vidas humanas sem exceção. Entretanto, em alguns lugares esse pensamento não prevaleceu e, ao contrário, reforçou a condição de que algumas são mais importantes que outras.
De repente é como se a estatística populacional inebriasse os sentidos e trouxesse a falsa impressão de que há tantas pessoas, que o dilema entre a vida e a morte não ameaça o equilíbrio da dinâmica produtiva e mercantil. De repente se assumiu abertamente a visão que compreende o ser humano como peça de reposição, que pode ser substituída sem comprometer o sistema.
Só que dentro dessa conjuntura, algo muito mais importante ficou escancarado. No esquema da pirâmide social está de fora desse enquadramento apenas o topo; portanto, uma ínfima parcela. Gente que não perde a pose, nem o privilégio, nem as regalias, e continua a ditar as regras, a vigiar e a punir.
Sendo assim, de resto todo mundo é substituível. Não tem ninguém mais, ou melhor, na fila do pão. Ninguém para se sentir, assim, tão importante. Basta observar com um bocadinho mais de atenção o cotidiano para perceber que acima do tijolinho de onde você discursa e faz cara blasé há sempre alguém em um degrau acima, fazendo o mesmo. Isso significa, na verdade, que esse “superior” faz sombra e diminui a sua expressão sem você nem se dar conta.
Seus olhos e sua mente fechados não impedem, portanto, que o mundo transite por essa flagrante desigualdade. Nem tampouco é capaz de blindar você contra as adversidades e imprevisibilidades que circulam pelo ar. Tudo muda o tempo todo. Essa é a dinâmica para quem tem os pés fincados sobre a Terra.
A questão é que, ao contrário de fingir que nada disso acontece, também, era de se esperar que o ser humano almejasse por um mundo mais livre, mais igualitário, mais fraterno, a fim de mitigar as distâncias e perversidades existentes. Afinal, não é o isolamento social que tem separado as pessoas; elas já estavam isoladas antes disso, por milhares de bolhas de segregação.
Mas, essa expectativa, também, foi frustrada. Porque a liberdade, a igualdade e a fraternidade só valem dentro de cada bolha em particular. Não há o menor interesse para que haja uma ruptura delas para a consolidação de um coletivo. Todos os pensamentos e ações parecem voltados para a manutenção dos individualismos e suas individualidades. Alguns comendo brioches, outros o pão amanhecido, e muitos, sem nada na mesa. ...
O pior é perceber que se o COVID-19 assola o mundo neste século, enquanto doença do corpo desconhecida pela ciência, a humanidade já desfalece a alma há muito mais tempo. Está em valores, princípios, sentimentos e emoções distorcidos, dispensados amiúde, a deterioração humana enquanto sujeito. Desde que se sintam confortáveis, as pessoas encontram uma dificuldade imensa de pensar no outro e, por consequência, nas demandas dele; tão as mesmas que as suas.
É o que se tem visto, por exemplo, no caso de usar, ou não, a máscara. Aqueles que decidem não usar expressam a limitação de acreditar que essa escolha é de foro pessoal; quando, na verdade, ela protege coletivamente. Então, se cada um usasse a máscara se estabeleceria uma rede de proteção conjunta. Mas, o fato é que esse tipo de comportamento se dissemina por milhões de outros exemplos cotidianos e desenvolve prejuízos sociais inestimáveis.
Porém, chegamos a um tempo em que a superficialidade no trato da vida não cabe mais.  O imponderável tem trazido uma exigência e uma complexidade que demandam respeito e responsabilidade coletiva. De modo que suas pautas fazem emergir imediatamente inúmeras condições e conjunturas que foram sendo postergadas e, agora, não podem mais permanecer irresolutas, como é o caso da desigualdade social.
Não se pode esquecer que o início da história pandêmica começou pelo topo da pirâmide, pessoas que tinham acesso a bens e serviços de alto padrão, que haviam viajado recentemente para outros países, enfim... E o vírus que não conhece fronteiras e nem limites se espalhou. Infectou de A a Z sem distinção ou prerrogativa.
Entretanto, como era de se esperar, o COVID-19 para o resto da pirâmide apresentou desdobramentos muito maiores e graves, do que a própria doença, em razão de outros velhos e conhecidos contextos. A desigualdade os puniu mais uma vez. O desamparo de todas as ordens os expôs mais uma vez. Só não foi possível mantê-los invisíveis mais uma vez.
E diante de tudo isso, percebi que realmente “o futuro é a única propriedade que os senhores concedem de boa vontade aos escravos” (Albert Camus). Porque o futuro acena sempre com esperança, com perseverança, com a possibilidade do novo; mas, na medida em que a sociedade permanece sempre fiel na luta por manter intactas as suas zonas de conforto, inevitavelmente, ele se evapora em gotículas de espera. Por isso, cara-pálida, torna-se tão fácil viver de manifestações nonsense.  

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