Heranças coloniais... Heranças colonizantes...
Heranças
coloniais... Heranças colonizantes...
Por
Alessandra Leles Rocha
Não é o silêncio enlutado do século
XXI que tem algo a dizer e fazer pensar. Os sussurros que preenchem os espaços vêm
de longe, das paredes das Casas Grandes que ainda teimam em reinar absolutas. No
entanto, será que a Colonialidade é realmente isso ou essa é apenas uma percepção
distorcida, a fim de favorecer e aplacar a consciência de uns e outros?
Ausência de motivos para pensar a
respeito é o que não falta. A análise dos preconceitos raciais, culturais, religiosos,
econômicos e de gênero não pode continuar a passar a margem das raízes históricas
do Colonialismo. Essa prática de conquista e dominação territorial e humana, que
se estendeu do século XV ao XIX, não apenas explorou riquezas como, também, vidas.
E é nesse ponto que se precisa aprofundar a reflexão; pois, como disse Chimamanda
Ngozi Adichie, há sempre o perigo de se construir uma única história1.
Em mais de quinhentos anos, o
discurso consolidado socialmente deu fala ao colonizador. Justificou,
legitimou, empoderou seus comportamentos e práticas, rendendo-lhe reverências e
status no campo das habilidades e competências mercantis e gestoras. Mas, e o
lugar de fala dos colonizados? Por incrível que pareça, ele se criou em um viés
absurdamente curioso; pois, começam daí os problemas.
Quem eram os colonizados? Deveriam
ser todos os que nas colônias viviam; mas, não. Construiu-se uma ideia de que
os descendentes europeus que nelas habitavam eram uma casta superior a todas as
demais. Não conseguiram se perceber cativos e dominados pelos interesses e exigências
metropolitanas, espoliados e escravizados pagadores de impostos. Enfim, estavam
aquém, não eram ninguém aos olhos das Metrópoles senão meros bajuladores e empregados
a serviço das cortes europeias.
Portanto, causa repulsa pensar como
puderam reproduzir esse tratamento desprezível aos outros, aos demais
habitantes das colônias. Mas, assim o fizeram e fazem até hoje. Transformaram
as demais etnias existentes no país em entes colonizados no estrito sentido da
palavra, para não enxergarem a si mesmos no espelho. Deram-lhes a insignificância e o
desprezo que carregavam no próprio espírito; afinal, eram dependentes das esmolas,
das quirelas, das benesses e não “podiam” se indispor com a Metrópole,
desalinhar-se ideologicamente a ela.
Ao torná-las mão de obra de seus
caprichos e interesses, estabeleceram uma relação tóxica de convivência,
imputando-lhes sempre a condição de subalternidade e subserviência. Delegaram-lhes
as margens sociais. Retiraram-lhes os direitos humanos fundamentais, a começar pela
dignidade e a cidadania. No entanto, todos esses “esforços” não fizeram desses
brancos menos colonizados, não apagaram a sua história de serviçais
metropolitanos. Eles permanecem o que sempre foram de geração em geração.
Aliás, é importante frisar que
durante esse processo as Metrópoles assumiram um papel de compactuação com a
elite branca colonizada. Basta ver como lucraram com a venda de escravos africanos
para as suas colônias e relutaram décadas na concordância da abolição da
escravatura. Como participaram
ativamente na dizimação de diversas tribos indígenas nos territórios coloniais,
apoiando os colonizados brancos com seus exércitos. Enfim... As Metrópoles se
abstiveram sim, das suas responsabilidades diretas e indiretas no processo de
colonização mundial. Não é à toa que hoje, em plena Pós-Modernidade, sejam
cobradas social e economicamente por isso.
As desigualdades que se estendem de
um extremo ao outro do planeta não são mais do que a tradução dessa história. Na
medida em que tentam ocultar ou se distanciar de tais responsabilidades, as ex-Metrópoles
e as elites brancas colonizadas acirram as tensões, inflamam as convivências e
postergam as soluções, de modo que o quadro se agrava cada vez mais. Porque a
população mundial não para de crescer e a herança perversa e cruel recebida
pelas gerações massacradas, ao longo dos séculos, se mostra mais e mais incapaz
de ser esquecida.
Heranças coloniais... Heranças
colonizantes... No fundo, todos sabem que essas vidas marginalizadas, excluídas,
abatidas pela fúria estúpida das mãos humanas e do cotidiano, importam. Importam
muito e talvez, por isso, insistam na sua desqualificação e no seu morticínio para
não admitir que elas são as testemunhas
oculares dessa vergonha secular que se arrasta pelo tempo e teima em persistir.
Mas, não há como interromper a grandeza,
a importância, o valor, a significância... a transformação social promovida por
essas vidas. A metamorfose está em curso. Por isso, Marielle, Miguel, João Pedro, Agatha, Kauan, Kauê, Cacique Francisco,
Cacique Willames, Emyra Waiãpi, Cacique Guajajara e tantos outros jamais
serão estatísticas frias e perdidas na história. A história não é o reflexo de
um só olhar! Como disse João Guimarães Rosa, em seu discurso de posse na
Academia Brasileira de Letras (ABL), “As
pessoas não morrem, ficam encantadas... a gente morre é para provar que viveu”.
Portanto, essa prova de vida
liquida com qualquer possibilidade de invisibilização humana. Com quaisquer
intenções de esquecimento. Com quaisquer pretensões de extermínio. ... Essa
certeza só faz desamarrar o nó na garganta, só faz libertar o grito abafado, só
faz dar asas para a liberdade voar. A liberdade de ser e de estar que é direito e dever de
cada um; que é direito e dever de todos sem exceção.
1
ADICHIE, C. O perigo de uma única história. Disponível em:
http://www.ted.com/talks/lang/por_br/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html