Reflexões para o 1º de Maio


Frágeis bolhas...




Por Alessandra Leles Rocha





Mais do que a tragicidade imposta pela ação biológica do COVID-19, o que se traduz em 3,04 milhões de casos confirmados e 211 mil mortes em todo o mundo, a presença dele entre nós demonstra uma capacidade surpreendente de perfuração das bolhas de privilégios que sempre se mantiveram intactas ao longo da história.
As diferentes faces da desigualdade social no planeta pareciam, de certo modo, naturalizadas, banalizadas na visão de muita gente. Acontece que o trivialismo da vida decorre do desinteresse, ou mesmo da incapacidade, de atuar no sentido da transformação e do equilíbrio. Romper as zonas de conforto é sempre desafiador e exige uma disposição conjunta, a qual nem sempre se concretiza dadas as disputas e interesses genuinamente humanos.
Daí o fato dos ciclos históricos se repetirem, apesar dos sujeitos e contextos diferentes. Pontos de convergência comuns conseguem manter uma linha de pensamento que insiste em se perpetuar. O benefício que as desigualdades proporcionam para alguns é um exemplo disso. Em 2019 o mundo assinalava a presença de 18 milhões de milionários, o que não chega a 0,5% da população mundial, que gira em torno de 7,7 bilhões.
Isso significa que a existência da concentração de renda nas mãos de tão poucos implica necessariamente em uma má distribuição de recursos que fomenta as desigualdades. Estabelecendo, portanto, um ciclo perverso e perene de constantes ultrajes aos direitos humanos, o que inclui diretamente as relações de trabalho.
Segundo as relações econômicas vigentes, para que haja a construção da riqueza é inevitável que ocorra a pobreza. Assim, as relações de trabalho transitam pelo desequilíbrio de forças arbitrado pelos Estados-Nação; na medida em que esses estabelecem leis e tributos a serem cumpridos por ambas as partes envolvidas, ou seja, patrões e empregados.
No fim das contas, essa regulação quase sempre culmina em mecanismos que auxiliam para construir narrativas capazes de tornar plausível a consolidação do desequilíbrio. Um exemplo disso é atribuir à carga tributária, paga pelo empregador, aos baixos salários oferecidos à sua mão de obra; como se não houvesse dentro do mesmo contexto o enriquecimento daquele meio de produção.  
Mesmo assim, apesar desses vieses constitutivos das desigualdades, um fato especial merece atenção, no campo das relações trabalhistas. Os ciclos de mecanização e informatização do universo produtivo têm levado milhões de pessoas ao redor do mundo às filas do desemprego, recaindo sobre os países o ônus de atender e prover as demandas básicas de sobrevivência delas.
Vejamos que, mesmo antes da Pandemia emergir, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) já alertava que em 2019 a taxa de desemprego global poderia alcançar 2,5 milhões. Caso fossem incluídas as pessoas subempregadas ou que não estão procurando mais trabalho, o número alcançaria cifra muito maior.
São números que, indiscutivelmente, revelam uma impossibilidade em curto e médio prazo de realocação desses cidadãos no mercado de trabalho convencional; bem como, abrem espaço para uma ampla discussão em torno dos caminhos que o trabalho em si e suas relações sociais precisam construir a partir desse contexto.
Talvez, movida por uma perigosa displicência, a sociedade deixou fluir solta a velocidade de transformação imposta pela Revolução Industrial, iniciada na segunda metade do século XVIII, e não promoveu os ajustes necessários para que fossem mitigados os excessos e prejuízos à mão-de-obra empregada.
Na realidade atual, em que o mundo já vivencia a 4ª Revolução dos meios de produção e consumo, grande parte dessa população laboral permaneceu parada no tempo, sem ter sido preparada adequadamente para acompanhar o processo dessa evolução. O que significa não ter havido preparo nem do ponto de vista escolar cidadão nem do ponto de vista profissional.
De modo que, sumariamente, essas pessoas foram sendo afastadas e substituídas em razão do surgimento de novas tecnologias, as quais além da velocidade de produção acarretam aumento considerável de lucratividade e redução de encargos e benefícios trabalhistas.
A seara dos cargos operacionais, por exemplo, que antes abrigavam a maior parte dos trabalhadores, inclusive exigindo-lhes menos estudo e qualificação, agora se rende à limitação imposta pela demanda oriunda das máquinas e tecnologias. O que, de certo modo, também repercutiu em uma restrição ainda maior nos cargos de chefia, supervisão e direção.
À margem dos processos, essa imensa legião de “colaboradores” começou a vagar pela informalidade e pelo subemprego; o que, inevitavelmente, vem impactando as perspectivas econômicas. Há um desaquecimento natural nas relações de produção e consumo, na oferta de produtos e serviços, nos investimentos, enfim...
Realidade esta que vemos intensificada e agravada agora, no momento da Pandemia, e cujas expectativas no Pós-Pandemia podem alcançar o patamar de 25 milhões de novos desempregados no mundo, acirrando ainda mais as fronteiras das desigualdades.
A verdade é que além do desemprego, o subemprego tem se reafirmado em razão da redução das jornadas de trabalho e salários, o que impacta abruptamente o cenário da pobreza mundial.
Mesmo que muitos consigam manter seus empregos, o achatamento da renda será uma realidade que irá persistir por um longo período até alcançar a estabilização econômica global. Visto que, o panorama em torno da Pandemia não assinala uma resolução em curto prazo, dada as poucas e precisas informações sobre a dinâmica biológica do vírus e a inexistência de imunobiológicos e medicações, cuja eficácia já tenha sido confirmada cientificamente.
Na medida em que o ser humano volta a ser protagonista da sua própria história, em decorrência do imponderável que desestruturou completamente as suas bases de conforto e segurança, as suas relações sociais e produtivas passaram, portanto, a adquirir outros contornos e dimensões.  
Depois que um diminuto vírus rompeu, sem nenhum constrangimento, as barreiras das desigualdades e nos fez iguais diante da sua virulência – pois, na loteria da sobrevivência nem mesmo o capital representou garantia de absolutamente nada –, o que desenha esse cenário leva-nos, então, a admitir a necessidade de construir novos paradigmas socioeconômicos; o que incluem novas concepções de trabalho e relação laboral.
Enfim, a verdade é que o mundo e tudo mais, a partir de agora, se dividem em Pré e Pós-Pandemia.  Frente à urgência, a gravidade, o medo, o desespero,... emergidos tão repentinamente, não há mais como não se impor novas compreensões, valores, comportamentos e ações. Afinal, para se enfrentar o novo não há como mantê-lo sustentado sobre narrativas que visivelmente perderam o sentido; incluindo, as frágeis bolhas de privilégios.

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