E aí, o Brasil conhece o Brasil?


E aí, o Brasil conhece o Brasil?




Por Alessandra Leles Rocha




E aí, o Brasil conhece o Brasil? Parece que não. Impregnados pela ideia de que vivemos todos em mundo dominado pelas tecnologias da comunicação e da informação (TICs) há uma visível desconsideração da realidade nacional.
Há dias o país convive com as filas e aglomerações diante das agências da Caixa Econômica Federal, por conta de informações e recebimentos do Auxílio Emergencial, disponibilizado pelo Governo Federal, aos segmentos da população mais vulneráveis a Pandemia do COVID-19.
Embora, tenha sido criado um aplicativo para minimizar a procura presencial pelos serviços, não se cogitou a hipótese de que muitos desses indivíduos, não só possuem baixa escolaridade, mas vivem a margem das tecnologias e, portanto, dependem do atendimento in loco.
Assim, vamos percebendo o quanto o Brasil não conhece o Brasil. A existência de uma perspectiva cronificada por parte de um determinado e restrito grupo social, ao longo de séculos, impede um olhar mais abrangente e aprofundado sobre esse país. De modo que, a construção de uma linha divisória, entre o que é e o que não é importante para alguns, cria obstáculos para quaisquer lampejos de transformação na sociedade.
Nesse contexto, o que vem ocorrendo não só contraria as medidas de prevenção e segurança sanitária; mas, escancara a desumanidade que se aceita para uma gigantesca parcela da população. Afinal de contas, a carência de apoio, de visibilidade, de dignidade e de cidadania que essas pessoas padecem não retrata só o hoje.
O país que agora brada aos quatro cantos as suas incontidas aspirações ultraliberais e se incomoda visivelmente com as demandas assistenciais deveria, antes de tudo, fazer mea culpa; pois, ele próprio criou e cultivou com esmero a semente da desigualdade, como ela se apresenta.
Durante mais de quinhentos anos, ao fechar os olhos para as bolhas de privilégios que preservavam direitos e benefícios de alguns em detrimento de uma espoliação abusiva e ultrajante de outros, o cenário da dependência socioeconômica brasileira se instituiu.
A ideia era fazer com que a pobreza e a miséria alargassem seus tentáculos, além do alimento, para alcançar todos os domínios dos direitos fundamentais humanos; a fim de conseguir imobilizar definitivamente quaisquer eventuais tentativas de ruptura desses grilhões. Não tendo pão, que sobrevivessem com as migalhas; enquanto, movimentavam os meios de produção e garantiam o bem estar e a fartura no deleite esbanjador da riqueza das “Casas Grandes”.
Talvez, a grande verdade, seja que o Brasil só conheça o Brasil que ele idealiza. Um Brasil que não demande esforços. Um Brasil que não demande recursos. Um Brasil que não dependa de absolutamente nada. Um Brasil de “gente bem nascida”. Um Brasil que siga ao sabor dos ventos.
Só que o COVID-19 chegou e sem fazer distinção de ninguém está contaminando a todo vapor. Colapsando as estruturas de atendimento médico-hospitalar públicas e privadas. Arrastando daqui e dali a roleta-russa da pestilência; pois, ninguém sabe quem vai sobreviver ou não a força da virulência.
Enquanto isso há uma brincadeira macabra com o imponderável, em curso. É exatamente essa a definição para a realidade dessa legião de pessoas expostas em nome da sobrevivência. Talvez, não passe de um modo inusitado de desafiar a morte que teima em lhes chegar de um jeito ou de outro.
Na ótica do desespero pandêmico, são milhares de pessoas em todo o país já sem acesso mínimo à higiene. Sem água em quantidade suficiente e em condições de balneabilidade. Sem álcool gel. Sem máscaras. Vivendo nas ruas ou em aglomerados urbanos que não permitem satisfazer as demandas de isolamento social; sendo, portanto, um risco de saúde não só por causa da COVID-19.
Colocá-las à exposição em filas e aglomerações, durante esse período sazonal em que frequentemente as temperaturas no país decaem e inúmeras doenças de caráter respiratório emergem e sobrecarregam os serviços de saúde, pode levá-las a demandar ainda mais pelos serviços públicos. Estando estes já muito sobrecarregados, pela própria Pandemia, o risco de algum outro tipo de contaminação se torna mais iminente e insustentável.
Dizem que a morte sempre escolhe um pretexto para levar suas vítimas. Que ninguém nesse mundo fica para semente. Mas, tudo isso só cabe no tocante ao curso natural da vida. Quando ela foge da normalidade, quando a vida é suprimida pela ação ou negligência do outro ela passa a ser crime.
Isso porque toda vida importa. Não há mais ou menos importante nesse quesito. Mas, por aqui as contradições se avolumam. Dizem-se abertamente contrários ao aborto, à eutanásia, a pena de morte... Ficam em cima do muro quando questionados sobre os Direitos Humanos... Não se constrangem diante de uma desigualdade tão absolutamente corrosiva, como a que impera...
Enquanto o Brasil não se conhece, o COVID-19 mata. A fome mata. A miséria mata. A ignorância mata. A indiferença mata. A perversidade mata. ... Até o dia em que o Brasil, de tanto se desconhecer, de repente se descubra um genocida solitário, cujos ideais perderam a validade e a serventia diante da única coisa que sempre soube enaltecer: a morte.  

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