Nas curvas da insensatez


Nas curvas da insensatez




Por Alessandra Leles Rocha




Cada dia mais o ser humano se reafirma como um poço de antagonismos, os quais o conduzem a uma perda de credibilidade argumentativa constrangedora.
São tempos de negacionismos exacerbados, pontos de vista defendidos ardorosamente em detrimento da razão, a euforia incontida dos ególatras.
E nesse meio de campo surreal, eis que as curvas da vida me trouxeram uma reflexão bastante sugestiva e melancólica.    
Começo, então, pelas curvas ascendentes das estatísticas epidemiológicas sobre a expansão indiscriminada da COVID-19, no Brasil, que dão conta de aproximadamente 157.000 casos confirmados e 11.000 mortos, até o momento.
Apesar de todos os alertas da mais renomada classe científica nacional e internacional e das experiências registradas e compartilhadas por outros países; posto que, essa realidade diz respeito a uma Pandemia, ou seja, está se desenvolvendo em nível global.
Desse modo, diante do desconhecimento acerca da doença e da inexistência, portanto, de tratamento preventivo ou curativo, a melhor estratégia a ser seguida deveria contemplar um tripé entre higiene das mãos, testagem populacional e isolamento social, a fim de achatar a curva epidemiológica e evitar o colapso dos serviços médico-hospitalares e sua logística.
Mas, o que se viu de muitos foi a insensatez materializada no escárnio, na indiferença, no desrespeito e na negligência. Assim, a consolidação dessa curva da insensatez vai se baseando, então, na distorção entre a invencibilidade e a imortalidade.
Poderíamos até nos considerar invencíveis, mediante as conjunturas atuais, se estivéssemos dispostos verdadeiramente a aceitar e seguir as orientações científicas, abandonando todo e qualquer achismo ou casuísmo.  
No entanto, conforme aponta a realidade factual, não só estamos longe de sermos invencíveis, como estreitamos a verdade com a mortalidade. Nunca fomos tão mortais, como agora! Um certo vírus nos disse isso.
Aí, falando em invencibilidade, imortalidade e curva, não pude deixar de me lembrar de Ayrton Senna, o herói brasileiro das madrugadas e manhãs de domingo.
Estranho, frente ao que já discorri acima, pensar que, ainda hoje, 26 anos após sua trágica morte no GP de San Marino (Itália), ele continue inesquecível e reverenciado; inclusive, em seu país.
Pergunte aqui e ali, aos que viveram os anos 80 e 90, sobre os atributos míticos de Ayrton e verá as emoções saltarem-lhes os olhos. Mas, como se ele tinha uma brasilidade tão fora da curva?
A sua invencibilidade, por exemplo, era por ele compreendida na expressão de um trabalho árduo de dedicação, sacrifício, obstinação, responsabilidade e conhecimento. Isso porque, a sua luta, também, era contra um inimigo invisível, a velocidade.
E para ser invencível ele trazia a perfeição ao limite, por meio de um diálogo franco e contínuo com a equipe técnica; afinal, um herói não se faz sozinho.
A sua “máquina voadora” era o resultado absoluto de uma engenharia cientificamente lapidada. Ciência no carro. Ciência nos pneus. Ciência no combustível. Ciência na roupa. Ciência para que houvesse segurança e resultado.
Porque ninguém melhor do que ele para saber a inexistência da imortalidade. Todo esporte de alto nível tem riscos; mas, as corridas de carro sempre despontaram na preferência da tragicidade.
Dentro e fora das pistas, Ayrton já tinha visto muitas tragédias; algumas resultantes em mortes prematuras. Gilles Villeneuve, em 1982, durante os treinos qualificatórios.  Riccardo Paletti, em 1982, durante a corrida. Elio de Angelis, em 1986, durante testes. Roland Ratzenberger, em 1994, durante os treinos qualificatórios. Foram alguns desses desafortunados.  
O piloto pode e deve almejar a invencibilidade, mas não pode crer na imortalidade. As corridas de carro, por si só, já expõem pessoas à altíssima velocidade.
Esse risco poderia ser mitigado pela análise científica da engenharia; de modo que, os carros e demais arcabouço tecnológico da corrida pudesse dispor de mecanismos de segurança mais detalhados, mais eficientes.
Acontece que, por se tratar de um esporte alta e economicamente rentável, as corridas de carro se transformaram em um espetáculo assistido pelo mundo.
Poderíamos, inclusive, dizer que elas se tornaram “as arenas” do século XX, dada à presença maciça de público acompanhando os eventos presencial e virtualmente.
Portanto, no equilíbrio entre a segurança e o lucro, o segundo venceu e permitiu que o perigo se acentuasse sem ressalvas ou precauções.
Nessa “queda de braços”, Ayrton acabou sendo uma voz solitária no deserto. Ele tentou chamar a atenção do universo da Formula 1 para a implementação de medidas de segurança cada vez mais cientificamente efetivas; mas, não encontrou eco nas suas manifestações e reivindicações.
Até que no traçado da Curva Tamburello, em maio de 1994, Ayrton Senna da Silva bateu violentamente e faleceu. Apesar de seu empenho em cancelar aquele GP, após o falecimento de Roland Ratzenberger, um dia antes da sua própria morte; infelizmente, o negacionismo interesseiro falou mais alto.  
No fim, parece que a vida dos brasileiros encontra sempre as curvas da insensatez. As curvas perversas e cruéis que poderiam ter sido atenuadas e não foram. As curvas que legitimam as espirais da ganância e do poder. As curvas que calam histórias, sonhos, esperanças. As curvas que marcham de mãos dadas com a negação. As curvas que não sabem a importância de se curvar ao essencial, à vida.