Para pensar...
Os miseráveis no século
XXI
Por Alessandra Leles
Rocha
Mais de 13,2 milhões de brasileiros estão na miséria 1. Essa é a notícia de hoje.
Imediatamente, muitos tendem a associar a miséria com a fome; mas, ela vai
muito além 2. Miséria é a pobreza extrema,
ou seja, o indivíduo não dispõe de recursos suficientes para garantir a sua
sobrevivência e dignidade.
Nesse sentido o nível de miséria está relacionado ao Índice
de Desenvolvimento Humano (IDH), no qual a Organização das Nações Unidas (ONU)
avalia a qualidade de vida e o desenvolvimento econômico de uma população. De
modo que essa medida resume o progresso em longo prazo a partir de três
dimensões básicas do desenvolvimento humano: renda, educação e saúde. Por essa
razão se torna tão chocante esses números; visto que, a República Federativa do
Brasil tem como um de seus fundamentos “a
dignidade da pessoa humana”.
Quando se alcança um patamar desses, a invisibilidade da
questão perde espaço. Não há como não ver, não enxergar a miséria acontecendo em
todos os cantos. Talvez, não pela linguagem verbal que brada alto as suas
dores, as suas mazelas; mas, pela linguagem não verbal. A miséria é eloquente
na sua manifestação silenciosa. E contra fatos não há argumentos. A miséria é a
materialização dos abismos que fomentam as discrepâncias sociais.
Pode ser difícil compreender tamanha complexidade, quando se
está do outro lado da história; mas, não é impossível. Basta pensar que a
singularidade existencial, nem sempre se restringe a esse ponto de análise. Do mesmo
modo que cada um é um, as histórias, os cotidianos, não são scripts ou receitas
de bolo reproduzíveis igualmente. Por debaixo das pontes correm águas diversas.
Conjunturas, escolhas, oportunidades, muito do subjetivo entra nos cálculos da
vida.
Por mais que digam os números, por detrás deles ou nas suas
entrelinhas há muito mais. De perto a miséria revela-se ainda mais brutal, numa
corrente sucessiva de carências sociais que vão enovelando o indivíduo e
paralisando a sua vida de tal forma a sucumbi-lo na mais plena desesperança.
Ele não vive a miséria, ele sobrevive a ela.
Certamente, a sociedade nem sabe de sua existência; pois,
muitos deles nem dispõem de documentos básicos para obter o mínimo de
assistência social. Então, dessa carência para a carência de moradia,
alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene e transporte é um
piscar de olhos. De repente, ele é mais um a margem da dignidade, da vida, da
sociedade.
Ao contrário do que muitos pensam a miséria não tem aspiração
de se perpetuar no assistencialismo. Aliás, isso é totalmente antiproducente
para qualquer sociedade que vislumbra progresso e desenvolvimento. Quanto menor
o índice de miséria, mais cidadãos constituídos efetiva e autonomamente.
Portanto, a miséria é um reflexo de como a sociedade decide se organizar. Como
explica a física, vetores que estão na mesma direção e sentidos opostos se
anulam.
Mas, pior do que essa miséria apontada pelas estatísticas é a
miséria oriunda da alma, a qual se reflete cada vez mais presente entre nós.
Uma miséria que seca a compaixão e a empatia, enquanto transborda a avareza em
todos os sentidos. Ela culpa o miserável
pela sua condição, como se a miséria fosse uma escolha de vida, enquanto exime
a sociedade da sua responsabilidade gestora, ética e moral sobre o fato. Vez por outra, ela “faz caridade” na esmola,
como meio de mitigar a consciência de sua inconsciência cidadã. Aí eu lhe
pergunto: Quem serão os mais miseráveis, então?
A questão é que não se trata de pedir que alguém faça voto de
pobreza ou saia por aí repartindo seus pertences; mas, se as misérias não se
confrontassem na balança da vida, talvez, pudéssemos viver sob ares menos tensos,
menos conflitantes. Uma cidadania que prevê a garantia dos direitos e deveres
no âmbito da igualdade e da equidade torna a sociedade coexistindo
pacificamente e muito mais produtivamente.
Afinal, a realidade contemporânea não acena um futuro
promissor que caiba pensamentos e ações desiguais, como qualquer um pode
perceber. Seja por conflitos armados ou por catástrofes naturais diversas, a
verdade é que os espaços geográficos habitáveis no mundo estão encolhendo.
Seremos obrigados a compartilhar, a repartir, queiramos ou não; porque antes
que alcancemos o espaço de outros planetas, a nossa sobrevivência humana
dependerá de atitudes cada vez mais ousadas de desapego e altruísmo. De uma
hora para outra a conjuntura se transforma a revelia de nossa vontade; não
somos apenas estamos.
Daí a importância de descermos dos nossos pseudo pedestais
cotidianos e encararmos a miséria, estampada nas estatísticas e nos veios mais
profundos de nossa alma, com menos apego e vaidade e mais reflexão e
responsabilidade. Não nos esqueçamos: caixões não têm gavetas. Se os miseráveis
dos números não levarão nada, os miseráveis da alma tampouco.