Será mesmo um caso para conciliação?

Será mesmo um caso para conciliação?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Conciliação é uma palavra a se pensar, considerando que ela busca estabelecer um enfoque consensual, a partir de soluções negociadas que promovam, principalmente, uma harmonização das relações entre as partes. Bem, foi isso que propôs Alexandre de Moraes, um dos magistrados do Supremo Tribunal Federal (STF), diante do polêmico caso do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) que está sob sua análise na corte.

Entretanto, para início de conversa, é preciso esclarecer que o atual governo exerceu sua prerrogativa constitucional para a proposição de um decreto sobre o assunto. Além disso, antes de chegar à proposta final, ele se colocou a inteira disposição do diálogo, junto às lideranças do Congresso Nacional e partidárias, justamente, para a construção de um consenso. O que significa que em relação a esse viés, não há o que deliberar; posto que, houve sim, a interferência do Poder Legislativo sobre uma decisão do Poder Executivo, já acordada anteriormente.

Depois, vamos e convenhamos que o ponto da discórdia está fora de qualquer parâmetro conciliatório, por se tratar de um paradigma histórico. Não entendeu?! Ao longo de gerações, nesses pouco mais de 500 anos de história, a pirâmide social brasileira resguarda uma enviesada e desigual distribuição. O que de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atualmente se apresenta da seguinte forma: Classe A: 2,9%, Classe B1: 5,1%, Classe B2: 16,7%, Classe C1: 21%, Classe C2: 26,4%, e Classe D/E: 27,9%.

Ocorre que dentro da classe A, 0,06% dos indivíduos é que detêm, de fato, a centralização dos poderes e influências, sobre a dinâmica socioeconômica do país. São essas pessoas que não aceitam, em hipótese alguma, que a lógica herdada desde os tempos coloniais seja alterada. Traduzindo em miúdos, elas não querem que o Estado brasileiro atue no sentido de trabalhar em favor da justiça social, da igualdade, dos direitos humanos e da sustentabilidade socioambiental.

Por isso, seus representantes político-partidários no Congresso Nacional estão travando uma luta insana, não só contra a questão do IOF; mas, também, contra o aumento da tributação sobre os “super-ricos” através de uma alíquota mínima de Imposto de Renda para quem ganha mais de R$ 1 milhão por ano, visando viabilizar o projeto de isenção do Imposto de Renda (IR) para quem ganha até R$ 5 mil por mês; a proposta de Emenda à Constituição (PEC) 8/25, que acaba com a escala de trabalho 6x1; ...

Então, como esperar algum tipo de conciliação, quando o que está posto é o histórico cabo de guerra entre ricos (2,9% da população) e pobres (97,1% da população)? Essa não é uma pauta para se chegar a um consenso; mas, uma discussão que fala sobre cidadania, ética e senso de dignidade humana. Que deveria colocar a população, em sua imensa maioria, na dianteira desse debate.  Queiram ou não admitir, o Brasil tem uma dívida histórica com as camadas que sempre sustentaram o topo da sua pirâmide social; mas, foram alijadas sumariamente dos seus direitos humanos e cidadãos.

Chega a ser constrangedor pensar que, em pleno século XXI, seja preciso contestar questões absolutamente retrógradas, que foram incorporadas ao inconsciente coletivo nacional por força da experienciação colonialista/ imperialista. Todos os dias, os veículos de comunicação e de informação, são o espelho dos episódios de racismo, de intolerância religiosa, de misoginia, de trabalho análogo à escravidão, ... e de todo um conjunto de desigualdades socioeconômicas.

No entanto, não vemos nenhum dos magistrados do Supremo Tribunal Federal (STF) vir a público, por exemplo, propor a realização de audiências de conciliação para resolver a escassez de leitos de Unidade de Terapia Intensiva, que faz morrer à mingua milhares de cidadãos brasileiros, anualmente.

Ou para tratar da inacessibilidade aos tratamentos e medicações que afeta as vítimas de doenças raras, câncer e outras patologias. Ou para conter o avanço do uso de agrotóxicos no país, a tal ponto de pesquisas científicas apontarem a presença deles em lagos isolados e em fórmulas de nutrição infantil 1. Ou para proteger a imensa legião de trabalhadores dos efeitos devastadores da insalubridade mental. ... Enfim.

Muitas dessas pautas são rotineiramente deliberadas pelo Congresso Nacional de maneira irresponsável, descuidada, negligente. Acontece que elas afetam a vida de 97,1% da população; mas, não costumam ser objeto de questionamento ao Poder Judiciário, ressalvadas raríssimas exceções.

Passam à margem; mas, deixam o seu rastro de prejuízos incalculáveis, que reverberam através do tempo. Como no caso das crianças nascidas entre 1º de janeiro de 2015 e 31 de dezembro de 2024 e que manifestaram deficiência causada pelo Zika vírus. Só agora, em 2025, suas famílias deverão receber uma indenização de R$ 60 mil do Governo Federal 2.

Relembrando as palavras do antropólogo, historiador e sociólogo brasileiro, Darcy Ribeiro, “O ruim no Brasil e efetivo fator do atraso é o modo de ordenação da sociedade, estruturada contra os interesses da população, desde sempre sangrada para servir a desígnios alheios e opostos aos seus. O que houve e há é uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação e manutenção de seu próprio projeto de prosperidade, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente”.

Por essas e por outras, precisamos sim, promover uma conciliação. Mas, para que ela seja capaz de tratar com seriedade e respeito todas as demandas históricas nacionais, as quais dão margem para que uns e outros permaneçam insistindo na perpetuação das nossas vergonhas e abismos sociais. A começar com essa ideia abjeta de existirem cidadãos de primeira classe e de última classe. Assim, diante dos recentes acontecimentos, “Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar” (Darcy Ribeiro).