Até tu, filho meu?
Até tu, filho
meu?
Por Alessandra
Leles Rocha
Lamento, mas o Brasil nunca foi
essa imagem de país ordeiro e feliz, como uns e outros quiseram acreditar. Olhando,
com bastante atenção para a sua historicidade colonial, ele só tem avesso. Expresso
por uma atroz desigualdade, um conservadorismo hipócrita, um flagrante conjunto
de preconceitos e de intolerâncias diversas, enfim... tudo muito bem nutrido
pelas gerações que sucederam suas ancestralidades metropolitanas monárquicas e
burguesas. Em suma, as elites, oligarquias, aristocracias ou qualquer outra
denominação que desejem empregar.
De modo que, nesses pouco mais de
500 anos, os registros dão conta das mais abjetas e horrendas formas que esses indivíduos
utilizaram para garantir não só a manutenção de todas as suas regalias e privilégios;
mas, particularmente, dos seus poderes. Independentemente, se isso dependesse (ou
não) de passar por cima, com toda a fúria, da sua dignidade, da sua ética e da
sua moral. O que significa que tramas golpistas são parte desse repertório
ultrajante. Por isso, não cabe qualquer perplexidade verde e amarela.
Há um provérbio que diz, “Há
males que vem para o bem”. Infelizmente, temos sido condescendentes e
permissivos, em demasia, diante dos nossos comportamentos historicamente
rançosos, ainda que, vivendo em pleno século XXI. O que cada cidadão deveria
estar fazendo, nesse exato momento, é uma análise crítica e reflexiva sobre um
único ponto, ou seja, pelo poder vale tudo? Afinal, dependendo da resposta, a
sua identidade nacional e a sua consciência cidadã tendem a ser reveladas.
Veja, esse é um questionamento o
qual não cabe ficar em cima do muro. Acontece que se a resposta for positiva, ela
não vale somente na perspectiva dos grandes poderes. Esse tudo engloba o micro
e o macro nas relações sociais, de modo que ele representa a abdicação de todas
as crenças, valores e princípios fundamentados pela dignidade, pela ética e
pela moral. Vale atentar contra as leis. Vale exercer a corrupção. Vale ameaçar
à vida alheia. Vale depredar o patrimônio público. Vale lutar contra à
Democracia. ...
De modo que esse tipo de apoio
representa uma legitimação que não trata somente da liberação para o caos
social. Nas suas entrelinhas há, também, uma legitimação para a perpetuação
histórica daqueles que sempre detiveram os poderes nas mãos. O que significa dar
permissão para que essas pessoas permaneçam definindo os rumos do país, o
cotidiano dos cidadãos, segundo as suas pretensões e interesses particulares. O
projeto de governança que essas pessoas têm em mente não passa pela observância
e o atendimento às demandas da grande massa da população. Por isso, qualquer um
que venha a se mostrar um obstáculo aos seus planos é, automaticamente,
rotulado e tratado como inimigo.
E não há dificuldade de se
entender esse cenário, quando se pode, além de revisitar as páginas da história,
observar como agem certos países, por aí, em plena contemporaneidade. O mundo
está repleto de autocracias e, contrariando às expectativas, de uns e outros,
nem todas são de natureza ultradireitista. As dificuldades em lidar com as
incertezas, cada vez mais recorrentes, têm levado os modelos de governança a um
alinhamento autocrático, que se traduz por certas características:
centralização do poder, manipulação do sistema político e eleitoral,
nacionalismo, elitismo, conservadorismo, entre outras.
Para o topo das pirâmides sociais,
a preservação dos seus poderes parece estar na total dependência dessa manifestação
tirânica, autoritária, opressora. Por isso, apesar de clichê, o mundo vive sob
constante ameaça, legitimada pelos fins justificando os meios. Como se todos os
recursos fossem válidos nessa luta. Enquanto isso, o planeta Terra se esfacela,
sob diferentes formas, diante dos nossos olhos. Eventos extremos do clima.
Deslocamentos forçados. Escassez hídrica e de alimentos. Insuficiência habitacional.
Empobrecimento. Adoecimento físico e mental. ... Acontecimentos que as disputas
do poder, em si mesmas, jamais conseguirão equacionar e/ou resolver.
Aos trancos e barrancos, o Brasil chegou ao século XXI, se negando a ver, a falar, a ouvir, a desconstruir e a ressignificar a sua história. Como vemos, o exercício da negação é inglório, é inútil. O mundo gira, gira, até que, em um dado momento, seja preciso enfrentar de peito aberto aquilo que nos incomoda, nos desinquieta, nos amedronta. Aí, a gente descobre que “As pessoas sabem aquilo que elas fazem; frequentemente sabem por que fazem o que fazem; mas, o que ignoram é o efeito produzido por aquilo que fazem” (Michel Foucault). Portanto, “O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (Michel Foucault).