Reflexões sobre o fracasso civilizatório
Reflexões
sobre o fracasso civilizatório
Por Alessandra
Leles Rocha
Em tese, a notícia de que “Em
9 comunidades Yanomami, 94% dos indígenas têm alto nível de contaminação por
mercúrio” 1 aponta para o sucesso do
plano genocida de extermínio dessa etnia do cenário populacional brasileiro. Mas,
não é tão simples assim.
Primeiro, porque não se pode desconsiderar
todo um coletivo populacional ribeirinho que depende diretamente das águas e
dos peixes dos rios amazônicos. Portanto, não são apenas os indígenas Yanomami
as vítimas desse morticínio. Há muito mais cidadãos envolvidos nesse
adoecimento compulsório.
Segundo, porque os cursos d’água amazônicos
permanecem sob intensa contaminação por mercúrio e outros metais pesados. O
pesadelo na região não acabou! O garimpo continua agindo e deixando seu rastro
de destruição. Águas, peixes, solo, fauna e flora estão sob efeito
biocumulativo tóxico.
Por fim, porque a tragédia
Yanomami é o símbolo do nosso fracasso civilizatório; pois, perdemos a
capacidade de exercer alteridade. Sim, uma imensa maioria da população
brasileira, ao longo do tempo, foi se abstendo da prática de se colocar no
lugar do outro, de entender suas angústias, dramas e desafios, de pensar além
do seu sofrimento e perceber a necessidade de respeitar a sua integridade, a
sua dignidade.
Contudo, me permito dizer que
essa observação, também, é em tese. Porque essa perda da alteridade, de certo
modo, é um reflexo da deterioração promovida pelo próprio senso narcísico, o
qual toma conta da sociedade contemporânea. A indiferença, a negligência, o
descaso, o desrespeito, a negação, que uns se permitem sentir pelos outros, é o
mesmo que fazem com eles próprios.
O que significa, na verdade, um
adoecimento humano de proporções inimagináveis, sem que um imenso contingente
populacional se de conta desse fato. Doentes do corpo, da alma, da mente. Impactados
não somente por metais pesados, como o mercúrio, mas por inúmeros outros
contaminantes, presentes no cotidiano, tais como monóxido e dióxido de carbono,
chumbo, dióxido de enxofre, ozônio, clorofluorcarbonos, polipropilenos,
polietilenos, policloreto de vinila (PVC), politetrafluoroetileno (Teflon), poliestireno,
agrotóxicos.
E apesar dos pesares, o
negacionismo corre solto pelos prados do progresso e do consumo! O que não
faltam são tentativas e mais tentativas para dissociar o indissociável, ou
seja, tentar convencer-se de que não existe correlação entre a escalada de
adoecimento global e a quantidade de substâncias tóxicas e deletérias, as quais
os seres humanos estão expostos continuamente. Lamento, mas o preço do desenvolvimento
industrial chegou!
A própria Organização
Pan-Americana de Saúde (OPAS), através da sua Agência Internacional de Pesquisa
sobre o Câncer (IARC), destaca “o crescente ônus do câncer, o impacto
desproporcional sobre as populações carentes e a necessidade urgente de abordar
as desigualdades do câncer em todo o mundo” 2.
Mas, esse é só um exemplo. Quantas doenças mais têm o seu gatilho de ocorrência
a partir dos agravos produzidos pela contaminação ambiental?
Pesquisas em todo o mundo buscam
exatamente conhecer esse processo, cada vez mais a fundo e melhor. Mas,
enquanto isso, cerca de 8 mil tipos diferentes de doenças raras tiram o sossego
de cientistas e autoridades. Afinal, segundo o Ministério da Saúde, “As
doenças raras são caracterizadas por uma ampla diversidade de sinais e sintomas
e variam não só de doença para doença, mas também de pessoa para pessoa
acometida pela mesma condição. Geralmente, as doenças raras são crônicas,
progressivas e incapacitantes” 3.
Relembrando as palavras de Bertolt
Brecht, “Primeiro levaram o negros. Mas não me importei com isso. Eu não era
negro. Em seguida levaram alguns operários. Mas não me importei com isso. Eu também
não era operário. Depois prenderam os miseráveis. Mas não me importei com isso.
Porque eu não sou miserável. Depois agarraram uns desempregados. Mas como tenho
emprego, também, não me importei. Agora estão me levando. Mas já é tarde. Como eu
não me importei com ninguém. Ninguém se importa comigo”.
Essa é a síntese que resume o
nosso narcísico individualismo brasileiro. Estamos sempre querendo nos abster
de nos enxergar enquanto seres humanos, para nos sentirmos mais e melhores uns do
que os outros. Talvez, daí derive o nosso total desapreço pelas minorias. Porque
temos o péssimo hábito de desumanizar as pessoas, de destituí-las da sua
condição existencial, sob diferentes formas e conteúdos, para nos sentirmos
importantes, poderosos, absolutos. O que
se permite fazer com os Yanomamis é, então, só um exemplo clássico dessa práxis.
Simplesmente herdamos esse
desapreço humanitário, cidadão, dos tempos coloniais. Haja vista o que fizeram
nossos colonizadores com uma maioria significativa dos povos originários
brasileiros, com os negros escravizados, enfim. Não aprendemos que a morte de
um cidadão representa um pedaço da história que se vai. Quantos costumes
perdidos? Quantas línguas silenciadas? Quantas culturas sonegadas pela extinção
de seus membros?
Mas, pelo rumo dos
acontecimentos, também, não falarão de nós. Seremos esquecidos, em algum
momento da história. Afinal, estamos trabalhando arduamente em favor do nosso próprio
adoecimento, da nossa própria extinção. Literalmente, flertando com ameaças visíveis
e invisíveis diversas, ao mesmo tempo em que hasteamos nosso desprezo pela ciência,
pelo conhecimento, pela nossa identidade cidadã, no alto do mastro nacional. Porque
“O que estamos vivendo hoje é que o homem deixou de ser o centro do mundo. O
centro do mundo agora é o dinheiro” (Milton Santos).